Percursos Históricos, Ano I, vol. maio, série 25/05a, 2011.
SOARES, Marilda
No início do século XIX, a vinda da Família Real para o Brasil e a necessidade de educar pessoas para servir à Corte e preencher os novos cargos administrativos, causaram mudanças na organização do ensino, especialmente com a instalação de escolas de nível médio e superior com finalidade utilitária. Os cursos implementados sob a Regência de D. João buscavam prover as necessidades imediatas de formação de novos quadros profissionais e, nesse sentido, significaram um rompimento com o programa literário e escolástico da educação colonial. Decretos criaram novos cursos e cadeiras no Rio de Janeiro, na Bahia, em Pernambuco e em Minas Gerais.
O advento do Império não modificou o panorama da educação no país. O "sistema educacional"[2] continuou estruturado de modo a atender às exigências da sociedade escravista e patriarcal, mantendo nítida separação entre ensino popular e educação de elite.
Em 1823, a Assembléia Constituinte elaborou um projeto que objetivava conferir novo caráter à educação: o artigo 250 afirmava que, no Império, haveria escolas primárias em cada termo, ginásios em cada comarca e universidades nos locais "mais apropriados". Com a outorga da Constituição em 1824, entretanto, esse projeto foi substituído pela garantia de instrução primária e gratuita para todos os cidadãos[3], e pela determinação de que haveria colégios e universidades para o ensino de Ciências, Letras e Artes.
Esboçava-se a possibilidade de estender às várias províncias alguns dos benefícios concedidos até então apenas às províncias do Rio de Janeiro, da Bahia, de Pernambuco e Minas Gerais. Contudo, durante todo o governo de D. Pedro I, não foi definido como seriam criadas as escolas e com quais recursos seria mantida a gratuidade do ensino, de modo que os dispositivos legais da Constituição de 1824 não chegaram a se tornar realidade. Desse modo, a estrutura educacional continuou basicamente a mesma, sem a instituição de mecanismos que permitissem o ingresso de crianças de outras camadas da população.
Outras medidas legais relativas à educação pública também foram ineficientes. Em 1834 entrou em vigor o Ato Adicional que, com tendências regionalistas, criou dois sistemas de ensino, um regional e outro federal: deixou a instrução primária e secundária sob a responsabilidade das províncias, e a educação superior a cargo da administração nacional[4]. Como resultado, ampliou-se a discrepância entre a quantidade das escolas existentes e a qualidade do ensino oferecido nas diversas regiões do país.
De acordo com as novas deliberações, em 1835 surgiu a primeira lei do ensino na província de São Paulo, pela qual determinava-se a criação de uma escola rural, com internato para órfãos, mas não foi colocada em prática, resumindo-se ao projeto[5]. Em 1854, o decreto de 17 de fevereiro reformou a instrução primária, determinando a necessidade de professores qualificados, fiscalização oficial, financiamento do material escolar pelo Estado e a criação de escolas em todas as paróquias, bem como de asilos-escolas para menores abandonados.
A organização descentralizada levou o ensino a diferentes orientações e resultados, condicionados pelos níveis culturais e econômicos das províncias. No Rio de Janeiro, por exemplo, permitiu a fundação, em 1837, do Colégio Pedro II - único estabelecimento público de ensino secundário do período e a primeira tentativa de unidade curricular no Curso Secundário - que tornou-se, mais tarde, modelo para outros liceus. Além disso, resultou no crescimento do ensino secundário particular com a proliferação de aulas e liceus, incluindo a fundação de diversos novos colégios de orientação jesuítica, como é o caso do Colégio São Luís, fundado em São Paulo em 1867.
Para suprir as carências educacionais geradas pelo regime descentralizado, e ao mesmo tempo formar o professorado, foi criada a Escola Normal, com estabelecimentos nas principais cidades brasileiras, dentre as quais incluía-se a capital paulista. Mas, devido à falta de orientação e recursos, estas escolas funcionaram de forma bastante irregular, como aponta Maria José Werebe:
A primeira escola normal foi instalada em Niterói, em 1835, e extinta em 1849. A segunda, em Minas, passou pelas seguintes fases: criada em 1835, instalada em 1840, fechada em 1852, criada novamente em 1859, foi reinstalada em 1860. Na Bahia, a escola normal, criada em 1836, só passou a funcionar em 1843. Em São Paulo, a escola criada em 1846, com um único professor, foi fechada em 1867, sendo reaberta em 1875 e novamente extinta dois anos depois para funcionar definitivamente em 1880 (...) Em outros estados observou-se a mesma instabilidade na criação e funcionamento das instituições de formação do professor primário[6].
Em 1846 foi criada, na província paulista, a primeira Escola Normal para moços e, em 1847, o Seminário das Educandas (que na realidade tinha o objetivo de ser um internato para órfãs). Mas, em 1854, pouco havia avançado o ensino primário, visto que formaram-se apenas 18 professores em um período de sete anos. Assim, "para melhorar o ensino primário criam-se aulas de Latim nas vilas de Itapeva, Tatuí, Parnaíba e Casa Branca"[7]. E o governo solicitou à população doações de prédios para a instalação de novas escolas.
Na década de 1870, Diogo de Mendonça Pinto, inspetor geral da instrução desde a década de 1850, avaliou as condições do ensino paulista:
Nossas escolas são, hoje, mais ou menos, o que foram sempre; longe de atingirem a perfeição desejada, nem sequer logram percorrer todo o estádio que a lei e a natureza da sua missão assegura. Elas não aprofundam as noções (...) Os chefes de família dão por finda a tarefa logo que seus filhos leiam, escrevam e ..., às vezes, basta soletrarem e garutajarem o alfabeto (...) A despesa com o ensino que já chegara a 25%, desce a 13% do total (1/8); isso é andar para traz (sic)[8].
Apesar das sucessivas recusas dos projetos de reforma educacional, no final do período imperial muitas reivindicações eram apresentadas por educadores e políticos. Em 1883, foi realizado um Congresso de Instrução para discutir o ensino primário, secundário, profissional e superior na Corte e nas províncias. Dos assuntos tratados destacam-se: a) estudo do ensino primário; vícios e lacunas de sua organização; providências e reformas necessárias; b) ensino primário obrigatório; meios de torná-lo efetivo; c) a educação nas escolas primárias; d) medidas concernentes a tornar efetiva a inspeção do ensino primário; e) organização de bibliotecas, museus escolares e caixas escolares; f) criação de um fundo escolar na Corte e nas Províncias para as despesas da instrução primária; g) escolas normais, sua organização e material técnico; i) meios de desenvolver a instrução primária nas zonas rurais; j) competência dos poderes gerais para criar estabelecimentos de ensino primário nas Províncias[9].
Nessa linha de projetos reformistas, em 1886, o Conselheiro João Alfredo propôs uma reforma substancial no ensino paulista, com eleição de um Conselho Superior de Educação, ensino obrigatório, curso primário de três graus, criação de jardins de infância, criação de um fundo escolar, aumento do número de escolas normais, construção de museus e escolas-modelo[10]. Este projeto foi inicialmente vetado por ser julgado dispendioso e, em abril de 1887, aceito após várias modificações que lhe retiraram o caráter inovador.
Em 1888, o Conselheiro Rodrigues Alves, presidente da província, chamou atenção para a obrigação dos poderes públicos em promover e desenvolver o ensino, propondo ação conjunta entre Império, províncias e municípios. Segundo ele, caso não fossem tomadas providências, São Paulo continuaria "a encontrar e lamentar o chocante contraste entre o progresso material e a deficiente educação do povo"[11].
Naquela época, Rangel Pestana enfatizava a importância da construção de uma grande escola normal, que pudesse servir de base para a educação popular. Nesse sentido, foi construída a Escola Modelo "Caetano de Campos", que deveria ser a mentora da educação nacional e, ao mesmo tempo, prova da hegemonia paulista no setor educativo[12]. Esboçava-se, pela primeira vez, a tentativa de estender os efeitos das transformações políticas e econômicas sobre a organização educacional, fato que não ocorrera por mais de três séculos.
Durante todo o período colonial e imperial, o ensino primário não fora uma exigência para o crescimento da produção, visto que a economia estava baseada no latifúndio e na escravidão, e as poucas atividades urbanas existentes não exigiram qualificações ligadas à formação educacional, de modo que não houve uma demanda real de ampliação do ensino primário.
Até o final do século XIX, poucas medidas concretas foram tomadas com o propósito de pôr em prática as deliberações legais e alterar o perfil geral da instrução primária. Embora a difusão do ensino elementar estivesse politicamente instituída, limitava-se aos cidadãos, ou seja, excluía, formalmente, os milhões de escravos e índios e, informalmente, os agregados das fazendas, caipiras, matutos, caboclos, vaqueiros, capangas, capoeiras, pequenos artífices, operários rurais, lavradores dependentes, pequenos negociantes, empregados e servidores de todas as profissões[13]. O privilégio da educação não se resumia apenas no acesso ao ensino superior, mas fazia-se presente em toda a estrutura educativa que, desde o primário, estava montada para atender a classe dominante, não se constituindo, portanto, em um direito humano e universal.
Bibliografia.
BEISIEGEL, Celso de Rui. A educação de adultos no Estado de São Paulo. Tese de Doutoramento. FFLCH/USP, 1972.
DUARTE, Nestor "O Estado e a Ordem Senhorial" In Comunidade e Sociedade no Brasil. São Paulo: Nacional, 1972.
LOURENÇO Filho. Ministério da Educação e Saúde. Primeiro Congresso Nacional de Educação - 1941. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação, 1946.
RIBEIRO, Carolina, "O ensino através da História". Separata do volume IV Centenário da Fundação da Cidade de São Paulo. São Paulo: Gráfica Municipal, 1954.
SOARES, Marilda A. O Ensino público primário no Estado de São Paulo, 1937-1945. Transformações e continuidade. Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH/USP, 1997.
WEREBE, Maria José Garcia. 30 anos depois. Grandezas e misérias do ensino no Brasil. São Paulo: Ática, 1994.
[1] Extraido de: SOARES, Marilda A. O Ensino público primário no Estado de São Paulo, 1937-1945. Transformações e continuidade. Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH/USP, 1997.
[2]A expressão "sistema educacional" para definir o conjunto dos estabelecimentos escolares do período deve ser considerada com critério, pois não existiu no Brasil, durante muito tempo, um sistema educacional propriamente dito, mas várias instituições educacionais que não estavam sujeitas às mesmas normas, como salientou Celso de Rui Beisiegel em A educação de adultos no Estado de São Paulo. Tese de Doutoramento. FFLCH/USP, 1972.
[3]Artigo 179.
[4]Ato Adicional de 1834, Artigo 10, item 2.
[5]RIBEIRO, Carolina, "O ensino através da História". Separata do volume IV Centenário da Fundação da Cidade de São Paulo. São Paulo: Gráfica Municipal, 1954, p. 102.
[6]WEREBE, Maria José Garcia. 30 anos depois. Grandezas e misérias do ensino no Brasil. São Paulo: Ática, 1994, p. 32-3.
[7]Segundo Carolina Ribeiro, op. cit., p. 103.
[8]Apud RIBEIRO, Carolina , op. cit., p. 104.
[9]LOURENÇO Filho. Ministério da Educação e Saúde. Primeiro Congresso Nacional de Educação - 1941. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação, 1946, p. 6-7.
[10]RIBEIRO, Carolina. op. cit., p. 106.
[11]id., p. 107.
[12]Mas a importância da Escola Modelo "Caetano de Campos" ligava-se, ainda, a aspectos estritamente pedagógicos, como apontou Carolina Ribeiro: "não era só o método analítico a implantar (...) era uma transformação completa na maneira de ensinar e, mais, uma formação da consciência do professor, para isso, maior cuidado na orientação do ensino normal, ensino intuitivo, difusão das idéias de Pestalozzi e Froebel; as primeiras preocupações com a psicologia da criança e o conhecimento das diferenças", conforme Carolina Ribeiro, op. cit., p. 109.
[13]Segundo Gilberto Amado, essas parcelas da população estavam excluídas da "sociedade civil", e portanto dos seus benefícios. Apud DUARTE, Nestor "O Estado e a Ordem Senhorial" In Comunidade e Sociedade no Brasil. São Paulo: Nacional, 1972, p. 348-9.