Patrimônios da Humanidade

Patrimônios da Humanidade

25 maio 2011

O ensino no período colonial: passagens da História da Educação Brasileira.

O ensino no período colonial: passagens da História da Educação Brasileira [1].

Percursos Históricos, Ano I, vol. maio, série 25/05, 2011.
SOARES, Marilda

Data de 1554 a primeira notícia do funcionamento de uma escola jesuítica em São Paulo. Tratava-se de uma tentativa de extender a área de influência religiosa, cultural e política da Companhia de Jesus, que se firmava no Novo Mundo. Em carta enviada a Inácio de Loiola, o Padre José de Anchieta relatou o fato:
Desde janeiro até agora, sendo até 20 pessoas, estamos em uma casa feita de madeira e palha, a qual tem 14 passos de largura e dez de comprimento, que nos serve de escola, dormitório e refeitório, enfermaria e cozinha e despensa ...[2].


Instalados no Brasil desde 1549, quando da chegada do primeiro Governador Geral, os jesuítas foram de suma importância para a consolidação do nosso modelo educativo. Segundo Francisco Larroyo,
Os jesuítas que vieram para o Brasil, estavam impregnados de  um ideal universal, possuíam uma concepção de vida própria. E na ação evangelizadora que desenvolveram, na fé que propagavam, completamente estranha a que aqui existia, tinha que   inexoravelmente  determinar um choque de culturas e a   desintegração dos valores nativos[3].

A Companhia de Jesus foi organizada na Europa, em 1540, como um dos principais instrumentos da Igreja para minimizar o impacto cultural da Reforma Protestante. Recorrendo à pregação e à organização de um sistema de ensino com conteúdo nitidamente religioso e métodos de rigor absoluto, seus membros obtiveram incontestável sucesso nos empreendimentos educacionais.
 Dentre os Estatutos da Ordem Jesuítica, incluía-se o Sistema de Estudo, ou Ratio Studiorum[4], cuja redação foi concluída em 1599 e permaneceu sem alterações até o ano de 1832.  Através dele, a Ordem manteve um sistema de ensino destinado a preparar os seus próprios membros e a juventude em geral, proporciando-lhes educação religiosa e secundária, atraindo, além dos católicos, jovens protestantes de diversas comunidades. 
A ordem dedicava-se à educação de líderes, com pouco interesse pelas massas, tendo criado duas classes de escola: colégios inferiores e colégios superiores, os primeiros correspondendo aos ginásios, e os últimos, às universidades e seminários teológicos.
A influência educativa das escolas jesuíticas foi incomparável. Na Europa, no século XVII, a Companhia de Jesus possuía 372 colégios; no início do século seguinte mantinha 612 colégios, 157 escolas normais, 24 universidades e 200 missões; e, no início da segunda metade do século XVIII possuíam  ao todo 728 colégios, contando com cerca de 22.000 membros[5].
Com essa quantidade de estabelecimentos de educação a organização geral do sistema de ensino jesuítico era mantida pela invariabilidade do método e do conteúdo, e, sobretudo pela disciplina. A administração das escolas fazia-se através da hierarquia e do controle de todos os seus membros. Os colégios situavam-se em províncias administrativas, coordenadas pelo Geral e presididas pelo Provincial. Abaixo deles, na hierarquia, vinham os Reitores dos Colégios, os Prefeitos de Estudos, os Inspetores de Ensino, os Mestres, os Monitores e os Pares[6].
No Brasil, a ação educativa da Companhia de Jesus,  iniciou-se na Capitania de São Vicente no ano de 1552, com a fundação do Colégio dos Meninos de Jesus, que objetivava catequizar as crianças indígenas. Mas devido às dificuldades de travessia da Serra do Mar para a realização do trabalho de catequese dos índios, os jesuítas decidiram se mudar para a região de Piratininga.
Nos primeiros tempos da colonização houve certa acomodação da cultura portuguesa às condições do Novo Mundo, tendo se verificado a adoção provisória de hábitos indígenas, mas do ponto de vista da cultura letrada, que gradativamente foi se firmando, adotou-se o plano de estudos da Companhia de Jesus para preservar os valores civilizatórios europeus: o ensino formal deveria fornecer curso de Teologia com estudos de Escolástica, Moral e Sagrada Escritura e posteriormente incorporando estudos de Direito Canônico e História Eclesiástica; curso Filosofia, também denominado Artes, abrangendo os cursos de Lógica, Introdução às Ciências, Cosmologia, Psicologia, Física, Matemática e Filosofia Moral; e o curso humanista, com estudos de Retórica, Humanidades, Gramática Superior, Gramática Média e Gramática Inferior[7].
O sistema de ensino montado pela Ordem era orientado para a formação dos seus sacerdotes. Por outro lado, seus colégios ocupavam-se de preparar indivíduos da elite para estudos superiores em universidades européias,  de modo que colaboraram para a formação dos futuros bacharéis que viriam a compor os quadros  da administração local. Além desse trabalho, desenvolveram uma ação evangelizadora voltada para a catequização dos índios e da população branca, e fundaram várias escolas destinadas à população masculina branca. 
Quanto às mulheres, mesmo das famílias  mais  abastadas, raramente recebiam instrução escolar, e esta limitava-se às aulas de boas maneiras e de prendas domésticas. As crianças escravas, por sua vez, estavam excluídas do processo educacional,  não tendo acesso às escolas[8].
Assim, a organização do ensino na Colônia caracterizou-se, desde o início, pela imposição de padrões que não valorizavam a cultura brasileira em formação, visto que a implantação das escolas jesuíticas no Brasil atendia em primeiro lugar aos propósitos missionários da Companhia de Jesus  e à política colonizadora de Portugal.
Entretanto, várias ações realizadas pelos representantes da Ordem no Brasil geraram conflitos de interesses políticos e econômicos entre os colonos e os padres e contribuíram para a sua expulsão. Um dos problemas principais estava ligado ao fato de que os jesuítas  mantinham as  obras de catequese, missões, junto a vários aldeamentos indígenas o que, de certo modo, garantia aos nativos o direito de não serem escravizados. E, como a prática do resgate[9] era em diversas regiões da colônia a maior fonte de renda para os colonos[10].
A tensão entre os jesuítas e os colonos foi marcada por vários episódios que tiveram início logo depois da chegada  dos representantes da Companhia. Sobre esses conflitos são esclarecedores os apontamentos de Azevedo Marques sobre a presença dos jesuítas nos campos de Piratininga:
Transmigrados para estes campos os padres jesuítas de São Vicente e de Santo André em 1560, por ocasião da extinção desta última vila, em junho daquele ano, por ordem do governador geral Mem de Sá, começou desde logo uma guerra surda e latente entre os padres e os seculares, pretendendo ambas as classes o predomínio sobre os índios, indispensáveis a ambos para o seu progresso e engrandecimento; nesta luta os padres sempre tiveram a seu favor, além do apoio das autoridades, a brandura aparente dos meios e sobretudo o monopólio da direção das consciências, meio infalível naquela época, porque a ele acompanhavam as excomunhões e censuras que chegavam em suas conseqüências até o confisco de bens, prisão e morte na fogueira[11].


Diante do conflito de interesses, os colonos de São Paulo em 1611 e em 1612 reuniram-se na Câmara para manifestar seu descontentamento com o predomínio dos Jesuítas, referindo-se especialmente ao fato de que os jesuítas colaboravam para a insubordinação dos índios e que estes eram o único meio para o desenvolvimento da economia e, portanto, seu trabalho era indispensável para que a produção desse resultados suficientes para o pagamento do quinto devido à Coroa..
Mas, contrariamente ao desejo dos colonos as manifestações não surtiram efeito imediato e os padres jesuítas conquistaram, pela bula papal de março de 1638, a exclusividade da direção dos índios.
Em diversas outras localidades da Colônia os ânimos mostravam-se contrários à permanência dos jesuítas. Em junho de 1640, no Rio de Janeiro, os padres comprometeram-se a não seguir a dita bula. No mês seguinte, em São Paulo, os colonos invadiram o Colégio dos padres com a inteção de expulsá-los. E vários outros episódios ocorreram, até que, em 19 de janeiro de 1759, uma lei veio a declarar extinta da Companhia de Jesus.
Embora houvesse choque entre os interesses da Companhia de Jesus e dos colonos portugueses, durante os primeiros duzentos anos do período colonial o perfil geral da educação representou os interesses da elite dirigente e colaborou para a reprodução das desigualdades sociais, portanto para o trabalho de colonização das novas terras e controle dos seus habitantes. O ensino esteve sob o controle das ordens religiosas e da Igreja e a adoção da Ratio Studiorum determinou o caráter do ensino ministrado, ou seja a implantação, já nos primeiros tempos de um modelo educativo organizado para os grupos política e economicamente dominantes, enquanto a maioria absoluta da população permanecia à margem do sistema educacional.
Em 210 anos que permaneceram no Brasil, os jesuítas expandiram seus ideais e delinearam o perfil do sistema educativo. Quando expulsos haviam fundado e mantido os colégios de Todos os Santos (Bahia, 1549), Rio de Janeiro (1556), Olinda (1568), Santo Inácio (São Paulo, 1631), São Miguel (Santos, 1652), São Tiago (Espírito Santo, 1654), Nossa Senhora da Luz (Maranhão, 1652), Nossa Senhora do Ó (Recife, 1678), Paraíba (1683), Belém (1687), e, no século XVIII, fundaram colégios na Bahia, no Pará, na Paraíba e em Paranaguá. A obra jesuítica comportava, ainda, missões, seminários e escolas de ler e escrever, obras que ficaram paralisadas com sua saída do Brasil.
Apesar dos ideais e da ação concreta da Companhia de Jesus estarem em choque com a nova configuração da política portuguesa e os interesses dos representantes da Metrópole no Brasil, nem todas as suas escolas foram fechadas. Permaneceram em funcionamento, na Colônia, a Escola de Artes e Edificações Militares da Bahia, as aulas de Artilharia do Rio de Janeiro e os Seminários de São José e São Pedro e o Seminário Episcopal do Pará[12], que atendiam às necessidades de formação dos quadros hierárquicos da Igreja e de defesa do território colonial.
Após a expulsão da Companhia de Jesus dos domínios portugueses, a Metrópole adotou uma série de medidas no sentido de preencher o espaço deixado pelo modelo educacional que aquela ordem religiosa havia implantado no Brasil. Dentre os atos da coroa portuguesa estão a criação de aulas de Gramática Latina, Grego e Retórica e a nomeação de Diretores de ensino[13]; em 1772, a instituição do subsídio literário para a manutenção do ensino primário e médio.
O decreto do Marquês de Pombal  trouxe mudanças ao sistema de ensino, fazendo com que, pela primeira vez, as aulas ficassem a cargo dos laicos, mas  não representou uma diminuição da força hegemônica da Igreja junto à sociedade colonial, pois ela continuou  a controlar as instituições educacionais através de outras ordens religiosas, pois entre 1759 e 1808, data da chegada da Família Real à Colônia,  os conventos das Ordens Carmelita, Beneditina e Franciscana, foram os responsáveis pela manutenção de um sistema de ensino no país, embora de forma menos regular e dogmática do que o  implementado  pelos jesuítas. Mas as medidas adotadas para reformular o ensino eram improvisadas e sem diretrizes definidas, o que eliminava a possibilidade de se substituir a "antiga" organização educacional. Como resultado, o ensino secundário se desagregou, limitando-se às aulas régias, e o ensino primário continuou a ser ministrado, basicamente, por religiosos de formação jesuítica. 
Entretanto, devido ao trabalho que desenvolveram, os jesuítas foram responsáveis pela divulgação do catolicismo e da cultura européia, bem como pela influência da religião católica na educação, valores que, incontestavelmente, permearam a organização do ensino laico implantado no Brasil.
Na capitania de São Paulo, nos chamados "povoados brancos", dada a necessidade de um contato mais estreito com os nativos, houve certa acomodação da cultura portuguesa às condições do Novo Mundo, através da adoção provisória de hábitos indígenas. Mas, do ponto de vista da cultura letrada, adotou-se a Ratio Studiorum[14] para preservar os valores civilizatórios europeus. Assim, a organização do ensino paulista caracterizou-se, desde o início, pela imposição de padrões que não valorizavam a cultura brasileira em formação.
Durante o período colonial, o perfil geral da educação permaneceu basicamente inalterado, representando os interesses da elite dirigente e colaborando para a reprodução das desigualdades sociais. O ensino paulista, assim como do restante do país, esteve sob o controle das ordens religiosas e da Igreja, não havendo participação direta do Estado na organização e manutenção das instituições educacionais. O ensino ministrado manteve um caráter elitista, organizado para os grupos política e economicamente dominantes, enquanto a maioria absoluta da população permanecia à margem do sistema educacional.



Fontes e Bibliografia.


Alvará de 28 de julho de 1759.

AZEVEDO MARQUES, Manuel Eufrásio de. Apontamentos históricos, geográficos, biográficos, estatísticos e noticiosos da Província de São Paulo: seguidos da Cronologia dos acontecimentos mais notáveis desde a fundação da Capitania de São Vicente até o ano de 1876. Vol. 2. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980, (Reconquista do Brasil, nova série; v. 3-4).

AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. Brasília: EdUnB, 1984.

LARROYO, Francisco. História Geral da Pedagogia. Tomo II. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1970.

QUEIROZ, Suely Robles Reis de. São Paulo. Madrid: MAPFRE, 1992.

SOARES, Marilda A. O Ensino público primário no Estado de São Paulo, 1937-1945. Transformações e continuidade. Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH/USP, 1997.





[1] Extraido de: SOARES, Marilda A. O Ensino público primário no Estado de São Paulo, 1937-1945. Transformações e continuidade. Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH/USP, 1997.
[2]Apud QUEIROZ, Suely Robles Reis de. São Paulo. Madrid: MAPFRE, 1992, p. 49.
[3]LARROYO, Francisco. História Geral da Pedagogia. Tomo II. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1970.
[4]Também denominado Plano de Estudos da Companhia de Jeseus, redigido pelo padre Inácio de Loiola e adotado como uma espécie de "código" de educação da época.
[5]Id.
[6]Ainda de acordo com Paul Monroe, "a ordem era assegurada e atingia-se um respeito absoluto pela autoridade, respeito que quase resultou na eliminação da individualidade. Não onstante estes caracteres de altoritarismo havia, em compensação, méritos em matéria de disciplina educativa. A disciplina assegurada por intermédio desta presença constante da autoridade e inculcada como um dever religioso, trouxe, como conseqüência, a quase eliminação do grande abuso da punição corporal, tão característico dos tempos anteriores. Em vez de recorrer à força física, os professores jesuítas elaboraram, ao decorrer  característicamente completo e prático da Ordem, um sistema  de recompensa que recorria ao motivo da emulação num grau jamais aplicado por qualquer outra organização de ensino". Id., p.184-5.
[7]Segundo Fernando de Azevedo, "essa cultura de feição literária e escolástica, era até certo ponto desinteressada, sem preocupações utilitárias, e se caracterizava pela sua unidade orgânica, ligada com estava, a uma determinada concepção de vida, dominante por essa época na metrópole e no seu unico centro universitário". A cultura brasileira. Brasília: EdUnB, 1984, p.131.
[8]Conforme salientou  Maria José Werebe, "nada fizeram para proteger os escravos dos maus-tratos, em particular as meninas e as mulhere vítimas da exploração sexual. As crianças negras não tinham acesso às escolas. Tanto os sacerdotes quanto os senhores consideravam desnecessário educá-las e até mesmo evangelizá-las. Apenas os mulatos, já no século XVI, por ordem expressa do rei de Portugal, deveriam ter direito à educação escolar", op. cit., p. 24.
[9]De acordo com os registros, naqueles primeiros tempos da colonização, para o apresamento e o comércio de escravos indígenas os europeus muitas vezes contavam com a ajuda de alguns chefes dos próprios índios. Essa atividades econômica recebia o nome de resgate, e sobre ela existem várias anotações feitas na época, geralmente por cronistas e viajantes.
[10]Principalmente na Capitania de São Paulo, onde não havia escravos suficientes para o trabalho nas lavouras e minas e, por outro lado, as atividades econômicas desenvolvidas não se mostravam tão rendosas quanto o comércio de escravos.
[11]AZEVEDO MARQUES, Manuel Eufrásio de. Apontamentos históricos, geográficos, biográficos, estatísticos e noticiosos da Província de São Paulo: seguidos da Cronologia dos acontecimentos mais notáveis desde a fundação da Capitania de São Vicente até o ano de 1876. Vol. 2. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980, (Reconquista do Brasil, nova série; v. 3-4), p. 17.
[12]LARROYO, Francisco. História Geral da Pedagogia. São Paulo: Mestre Jou, 1972. p. 943.
[13]Alvará de 28 de julho de 1759.
[14]Plano de Estudos da Companhia de Jesus, redigido pelo Padre Inácio de Loiola e adotado como uma espécie de "código de educação" da época.