Patrimônios da Humanidade

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25 abril 2015

DAGNINO, Evelina. Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando?



Percursos Históricos, Ano IV, vol. abr., série 26/04, 2015.
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DAGNINO, Evelina. ¿Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando? In: MATO, Daniel (coord.) Políticas de cidadanía y sociedade civil en tiempos de globalización. Caracas: FACES – Universidad Central de Venezuela, 2004.
RESENHA
SOARES, Marilda.
Evelina Dagnino é Pesquisadora Convidada da UNICAMP – Universidade de Campinas, representante do Programa Globalización, Cultura y Transformaciones Sociales, da UCV - Universidade Central da Venezuela em convênio com a Fundação Rockfeller.
O texto aborda o neoliberalismo e seus impactos sobre a reestruturação econômica e política brasileira, as contradições entre a política democratizante e o projeto neoliberal, bem como a ressignificação das representações de política e democracia, sociedade civil, participação e cidadania.
A autora faz considerações sobre o projeto de construção política da democracia no Brasil, destacando os movimentos de resistência e oposição ao Regime Militar, as ações democratizantes da década de 1980 e a promulgação da Constituição Federal de 1988, salientando que todos esses processos envolveram amplos setores da sociedade civil e dos movimentos sociais.
Alguns marcos históricos recebem destaque, como o estabelecimento da democracia formal, com eleições para o Executivo e Legislativo nas esferas municipais, estaduais e federal, especialmente nos anos de 1990, quando representantes dos movimentos sociais ascenderam a cargos políticos, tendo como o exemplo mais expressivo a eleição de Luís Inácio Lula da Silva para a Presidência da República, processo que Dagnino define como “trânsito da sociedade civil para o Estado” (p. 96), envolvendo a implantação legal instâncias de participação democrática, por exemplo, os Conselhos Gestores de Política Pública e o Orçamento Participativo.
Segundo a autora, o modelo neoliberal foi gradativamente implantado desde a eleição de Fernando Collor de Melo, mudando a configuração do espaço de atuação do Estado e dos movimentos emergentes da sociedade civil. Assim, Dagnino refere-se a uma “confluência perversa e deslocamento de significados” no que diz respeito aos distintos projetos políticos de construção democrática , quanto aos conceitos e espaços políticos de participação, sociedade civil, cidadania e democracia. O conceito de projeto político usado pela autora está na definição gramsciana, ou seja, os “conjuntos de crenças, interesses, concepções de mundo, representações do que deve ser a vida em sociedade  que orientam a ação política dos diferentes sujeitos” (p. 98).
O processo político nacional caminhou em torno da construção do Estado de Direito desde os anos oitenta, contudo, o avanço neoliberal gradativamente modificou as noções de participação política e democracia, esvaziando muitas das perspectivas dos grupos políticos e movimentos sociais organizados, na medida em que o Estado passou a encampar um modelo diferenciado de relação com as instâncias civis de participação política.  Dagnino afirma tratar-se de uma confluência perversa, pois o deslocamento dos significados é sutil, mas profundamente diferente na sua essência, ainda que os mecanismos políticos de ambos os projetos sejam similares.
A redefinição da noção de sociedade civil, especificamente, mostra-se pelo crescimento das Organizações Não-Governamentais e pelos papeis que elas desempenham, o advento do Terceiro Setor e as ações filantrópicas das Fundações Empresariais, paralelamente à “marginalização” dos movimentos sociais. Como consequência dessa mudança de conteúdo e significado da participação da sociedade civil nos espaços de poder, surge a ideia de identificação entre “sociedade civil” e ONG ou Terceiro Setor, assim como se amplia o processo de “onguização” dos movimentos sociais.
Ainda que as organizações da sociedade civil representes espaços confiáveis de mediação entre governo e sociedade, as relações entre ambos dão-se a partir da despolitização dos movimentos sociais. Por outro lado, acabam absorvendo e se responsabilizando pelo atendimento de certas demandas sociais que deveriam ser atribuições do poder público, especialmente no que diz respeito à diminuição das desigualdades e atendimento aos direitos básicos e constitucionalmente garantidos.
O que está em destaque é o deslocamento da noção de representatividade, pois as ONGs passam a ser vistas pelo Estado como porta-vozes dos segmentos como negros, mulheres, jovens e outros, e como entidades competentes e legítimas representantes dos setores sociais. Do mesmo modo, há o deslocamento da noção de participação, pois esta assume um caráter individualista, voluntarista, com notória despolitização da participação e, sobretudo, “o seu significado político e potencial democratizante é substituído por formas estritamente individualizadas de tratar questões tais como a desigualdade social e a pobreza” (p. 102), resultando na redução do poder de decisão da sociedade civil e de sua atuação na formulação de políticas públicas.
Assim, também a noção de cidadania é redimensionada. Das organizações e reivindicações em torno da ampliação dos direitos político-jurídicos, amplia-se e abrange as subjetividades, passando a reivindicar o direito à igualdade e à diversidade. Contudo, segundo a concepção neoliberal, a nova definição de cidadania passa pela noção de conquista individual, distanciando-se, portanto, da integração aos movimentos sociais, no sentido clássico do termo. A autora cita alguns exemplos das mudanças em curso: os direitos trabalhistas, conquistados no Brasil na década de 1940, agora são substituídos pela livre negociação entre padrões e empregados; a pobreza, vista como um mal a ser combatido pela ação reguladora do Estado,  contemporaneamente tem sido tratada como problema a ser resolvido pela solidariedade, pela assistência e caridade pública.
O espaço de participação política da sociedade civil tem sido limitado, na mesma proporção em que as responsabilidades do Estado têm sido reduzidas. Aliás, dentro do modelo neoliberal os movimentos sociais e sindicais são desqualificados quando chamados de “movimento político”. Tal concepção demonstra as contradições entre o neoliberalismo e a atuação política da sociedade civil.

CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da Internet.



Percursos Históricos, Ano IV, vol. abr., série 25/04, 2015.



CASTELLS, Manuel.  Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da Internet. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013.

RESENHA
SOARES, Marilda

Manuel Castells é um dos cientistas sociais mais citados no mundo, tendo recebido diversos títulos e prêmios internacionais. Lecionou diversas   Universidades na Europa e nos Estados Unidos. Atualmente é diretor de pesquisa em Cambridge, na Inglaterra, e professor da Universidade de Annenberg, nos Estados Unidos.
No livro Redes de indignação e esperança, Castells aborda os movimentos sociais contemporâneos à era da internet e os novos procedimentos adotados em diferentes localidades do mundo tendo como estratégia de mobilização as redes sociais, que a um só tempo tornou a informação acessível e compartilhou a indignação e as reivindicações que uniram, em manifestações públicas, milhares ou milhões de pessoas, inclusive em nações onde o autoritarismo até então impedira contestações públicas e atos de rebeldia.
A esse fenômeno, o autor denomina “autocomunicação de massa” e afirma tratar-se de um fenômeno que modifica as relações entre o ator social e os atores coletivos, e destes em relação às instituições e os poderes, o que instituições que tradicionalmente regularam as diferentes formas de poder –, pois os indivíduos passam a ter autonomia para comunicarem-se entre si em tempo real e vencendo todas as distâncias, pois as redes são “fontes decisivas de construção de poder” (p. 16).
Muitos movimentos sociais são embasados em experiências históricas ou em referências teóricas, ideológicas ou políticas, tendo como eixo o desejo de mudanças. Os movimentos contemporâneos unem os espaços digitais e urbanos, exercendo um “contrapoder” que se manifesta, historicamente, pela ocupação do espaço público para reivindicar justiça, convertendo-o em espaço político de expressão de diversos interesses individuais, cuja motivação pode ser o medo ou o entusiasmo. Assim, as manifestações são formas poderosas de comunicação das esperanças e dos objetivos comuns.
Castells propõe-se a avaliar o “impacto da ação conjunta dessas redes de indivíduos sobre as instituições da sociedade e sobre si mesmos” (p. 25). E o autor reflete sobre a relação entre as redes de contrapoder e de poder e o modo como aquelas definem projetos e regras de atuação, referindo-se inclusive aos movimentos nos quais a regra é não haver regra alguma.
Referindo-se ao início da década atual, o autor destaca que em países bastante diferentes os movimentos forma semelhantes na forma de organização, nos slogans e no “desprezo por seus governantes”, como, por exemplo, na Tunísia, Islândia, Espanha ou Estados Unidos. As lideranças eram definidas ad hoc, com destaque para a participação dos jovens. Com as novas mídias, as ações dos manifestantes eram divulgadas imediatamente, assim como as imagens violentas da repressão policial, com debates internacionais pela internet.
O autor considera a importância de analisar o contexto de cada país e as motivações concretas para a ocorrência das mobilizações sociais, e localiza em todos eles os problemas de ordem econômica, a oposição ao poder tradicional das elites, bem como a busca por maior liberdade de pensamento e expressão, além da crise de confiança do povo em relação a seus governantes. Sobretudo, afirma, esses movimentos representaram “a ascensão de novas formas de transformação social” (p. 49).e modelos para movimentos futuros.
Com a tecnologia de comunicação sem fio e conexão, formaram-se, nos movimentos, redes conectadas entre si e com o mundo, em um “tempo atemporal”, criando comunidades instantâneas e motivadas e mobilizadas pela indignação coletiva. Eram redes horizontais, multimodais, que favoreceram a solidariedade e o companheirismo, reduzindo a necessidade de lideranças políticas. Foram, também, autorreflexivos, questionando constantemente sobre o tipo de sociedade que pretendiam e como suas ações poderiam contribuir para o objetivo almejado, procurando o consenso.  
Castells considera tais manifestações e movimentos como expressões legítimas de caráter político, não apenas pelo peso eleitoral dos seus resultados, mas porque “projetavam uma nova utopia de democracia em rede baseada em comunidades locais e virtuais em interação” (p. 169), ainda que não houvesse um projeto de ação política ou objetivos predefinidos. Mas, é justamente nesse último aspecto – a indefinição dos objetivos – que o autor localiza a fraqueza de tais movimentos. Dentre os aspectos positivos, aponta que propõem uma nova utopia, um projeto e uma cultura de autonomia em relação às instituições e à sociedade; outro ponto positivo é que as redes de comunicação virtual conectam os indivíduos por meio dos compartilhamentos, retirando-os do individualismo; do ponto de vista político, consideraram ilegítimos os poderes constituídos, reivindicam direitos, exigindo a revisão do modelo de democracia praticada.
No posfácio à edição brasileira o autor tratou das mobilizações em mais de 350 cidades do país. O movimento “Passe Livre”, sob o slogan “Não são os centavos, são nossos direitos”, expôs o caos nos transportes públicos e na mobilidade nas metrópoles, questionando o subsídio oferecido pelo governo às empresas e o aumento das tarifas, expressando indignação frente aos políticos e suas decisões que não privilegiam os direitos da população, a saúde pública, os povos indígenas, a preservação da Amazônia, etc. Assim, formou-se uma rede de solidariedade. Contudo, Castells aponta que “o mais significativo movimento social brasileiro tem sido a resposta das instituições políticas” (p. 184). Elas desqualificaram e reprimiram o movimento, havendo poucos dispostos a ouvir os manifestantes, como Marina Silva (que os apoiou) e a presidenta da república, que  afirmou a necessidade de ouvir “a voz das ruas”.
      O grande saldo positivo, afirma, foi a retomada das discussões sobre a reforma política nacional e, sobretudo, o empoderamento dos cidadãos. Contudo, salienta que o objeto analisado está em processo de construção histórica permanente, cujos desdobramentos ainda estão por vir, podendo ordenar-se e reordenar-se em função dos eventos de ordem política e econômica e dos encaminhamentos e respostas às demandas sociais.