Igualdade
e respeito humano em face da diversidade étnico-racial. Repensando o Dia da
Consciência Negra.
Percursos Históricos, Ano I, vol. nov., série
20/11, 2011.
SOARES, Marilda
No
Brasil, a questão da identidade é um tema bastante complexo, tal como em
qualquer outra Nação. Mas há peculiaridades que lhe são próprias, como a
colonização europeia, o processo de formação territorial, as lutas pela
independência, a manutenção prolongada do regime e da mentalidade escravista, a
tardia implantação dos sistemas públicos de ensino, dentre outras. Talvez essas
particularidades nos ajudem a repensar a dificuldade de setores sociais para compreender
a diversidade como patrimônio nacional.
A
valorização da imagem e dos padrões civilizatórios estrangeiros predominou
desde os primeiros tempos da formação histórica nacional. Imagem inicialmente
constituída pela visão inaugural da Terra
Brasilis, pelo olhar europeu que foi o referencial para os registros
escritos e visuais sobre a terra e os povos nela dominados, com o objetivo de
ampliar as possibilidades de expansão colonizadora e acumulação de capital.
Ao
longo do processo de colonização, e mesmo depois, a superioridade cultural do
europeu foi sendo constantemente reafirmada, pelo predomínio político,
econômico e social, consolidando-se uma sociedade patriarcal, escravista,
racista e excludente.
No
Império e nas décadas iniciais da República, as teses racistas ligadas ao
projeto de branqueamento ou ao projeto de democracia racial representam a
formulação de uma identidade para o povo brasileiro, baseada no transplante
cultural e na valorização da origem cultural e étnica europeia.
Na
segunda metade do século XX, com os meios de comunicação e o contexto político
e econômico mundial, o Brasil vivenciou a incorporação de valores da cultura
norte-americana, pela ampliação do poder dos Estados Unidos sobre as demais
nações americanas e a difusão dos padrões culturais, comportamentais, por meio
do cinema hollywoodiano. Assim, mesmo com as mudanças nos padrões, a
valorização do “outro” continuou interferindo no processo de constituição da
identidade brasileira.
Em
épocas mais recentes, as leis contrárias às práticas sociais excludentes
mostram a tentativa de rever e superar as formas de preconceito incorporadas e
reproduzidas nas relações sociais. Mas, para tanto, é preciso que a sociedade
queira, primeiramente, superar o estigma da colonização e da subordinação aos
padrões externos, reconhecendo-se como nação, portando, valorizando sua
identidade.
O
Dia da Consciência Negra, 20 de
novembro, traz novamente a oportunidade para
repensar a necessidade de respeito à diversidade étnica e cultural que
caracteriza a formação histórico-social do povo brasileiro – como fator
marcante desde os primeiros tempos da colonização e um elemento que se mantém
ao longo da história do Brasil.
316
anos depois da morte de Zumbi, líder de Palmares, a sociedade brasileira
permanece refletindo sobre a importância do tema, e realizando atividades que têm
por objetivo lembrar as lutas passadas e presentes, render homenagens e
reapresentar as indagações que permanecem em aberto, uma vez que diversas
situações cotidianas continuam solicitando atenção da sociedade civil e da
sociedade política para minimizar as desigualdades e ampliar o respeito à
diversidade e à pessoa.
Contudo,
em uma sociedade que sagrou o escravismo como instituição legítima – pela
estrutura econômica e pela cobiça – a passagem para a aceitação do princípio de
igualdade encontra, ainda hoje, algumas resistências.
Exemplo
disso são as discussões que giram em torno da política de cotas para educação e
trabalho, não aceitas por diferentes setores que não compreendem a necessidade
e urgência de reparações pelas perdas sofridas pelos grupos afro-brasileiros.
Interessante
notar que o Projeto de Lei nº 3627/2004 não se refere apenas aos
afrodescendentes, mas apresenta o
seguinte conteúdo:
O
CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º
As instituições públicas federais de educação superior reservarão, em
cada concurso de seleção para ingresso nos cursos de graduação, no mínimo,
cinquenta por cento de suas vagas para estudantes que tenham cursado
integralmente o ensino médio em escolas públicas.
Art.
2º Em cada instituição de educação
superior, as vagas de que trata o art.1 o serão preenchidas por uma proporção
mínima de autodeclarados negros e indígenas igual à proporção de pretos, pardos
e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a
instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.
Parágrafo
único. No caso de não preenchimento das
vagas segundo os critérios do caput, as remanescentes deverão ser
completadas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em
escolas públicas.
Entretanto,
as referências avessas à “lei de cotas” dirigem-se exclusivamente contra ao
“favorecimento aos negros”, questionando a “constitucionalidade” de uma
política de reparação.
Outro
exemplo de preconceito velado aparece nas falas daqueles que combatem a própria
institucionalização do feriado de 20 de novembro, considerando que,
diferentemente dos demais feriados nacionais, este, em particular, causa danos
à economia, diminui a produtividade e os ganhos do comércio.
Mas
para que se possa repensar essas questões, com base em dados mais objetivos
sobre a legitimidade das reparações, é preciso que se tenha em mente: homens e
mulheres trazidos da África para o Brasil e submetidos à odiosa escravidão
foram responsáveis por uma enorme quantidade de serviços e riquezas que não se
pode calcular, mas que se pode dimensionar.
Entre
os séculos XVI e XVII, cerca de 1.350.000 pessoas foram traficadas para
produzir riqueza nos trabalhos ligados à produção da cana-de-açúcar; no século
XVIII, foram mais 600.000, trazidos para a exploração mineradora; no século
XIX, cerca de 250.000 para a cafeicultura e 1.100.000 para as produções de fumo
e algodão, trabalhos domésticos e outros.
Ou
seja, aproximadamente 3.300.000 pessoas foram traficadas para o Brasil, sendo maior
ainda o número de escravos quando acrescidos seus filhos, considerados
igualmente propriedade dos seus senhores. Eles foram retirados de suas famílias
e destituídos de suas culturas, deixando de ser donos de si mesmos, de ser considerados
como pessoas. Eram homens e mulheres da
Costa da Mina (Ajudá) e Angola (Congo, Luanda e Benguela); bantos, do centro e
do sul da África, e sudaneses do centro e noroeste.
Com
seu trabalho, africanos e afrodescendentes foram responsáveis pela produção do
açúcar (600 a 700 milhões de arrobas), ouro (1.200 toneladas), todas as
construções e serviços domésticos e outros tantos que constituíram o patrimônio
dos seus proprietários. Quando libertos pela assinatura da Lei Áurea tornaram-se
legalmente livres, no entanto, não houve nenhum tipo de preocupação ou medida
política que oferecesse garantias para o cumprimento da Lei. Além disso, as
permanências na mentalidade escravista determinaram a continuidade do processo
de exclusão e tentativas de inferiorização do afrodescendente.
Felizmente,
persistiram outras vozes. Em entrevista concedida à TV Cultura, no documentário
Casa Grande & Senzala, Florestan
Fernandes afirmou:
Os brancos
diziam que em nenhum país do mundo essa nefanda instituição foi tão doce como
no Brasil. Agora não me passa pela cabeça - não deve passar pela cabeça de
ninguém - que essa nefanda instituição, como os próprios brancos chamavam a
escravidão, que ela pudesse ser doce em algum lugar. Ela só pode ser doce da
perspectiva de quem estivesse na casa-grande e não na perspectiva de quem estivesse
na senzala
O sociólogo referia-se a um discurso tristemente
comum, que nega a violência da escravidão e que naturaliza a exclusão social, e
à necessidade de manter viva a memória dos erros de interpretação cometidos no
passado, para que eles sejam enfim superados.
Devido à dificuldade de ultrapassar a
mentalidade escravista, bem como às lutas e à vontade política de superação
desse atraso, foram necessários muitos embates pelo direito, pela democracia, pela
cidadania, o que se mostra, hoje, em conquistas como a Lei 10.639, de 9 de
janeiro de 2003, que determina:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino
fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino
sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se
refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no
Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil.
A
educação para a cidadania e para o respeito aos indivíduos, independente de
cor, raça, sexo, religião etc. é parte de um processo que não se realiza em
pouco tempo.
Como
afirma Lilia Moritz Schwarcz, em História
da vida privada no Brasil,
A
situação aparece de forma estabilizada e naturalizada, como se as posições
desiguais fossem quase um desígnio da natureza, e atitudes racistas,
minoritárias e excepcionais: na ausência de uma política discriminatória oficial,
estamos envoltos no país de uma ‘ boa consciência’ que nega o preconceito ou o
reconhece como mais brando.
Daí
a necessidade de investir em uma formação identitária que aborde as diferenças
não como pontos irreconciliáveis dentro das relações interpessoais, mas como
característica e riqueza do povo brasileiro, e para que o desejo de igualdade e
justiça não sejam apenas expressões destituídas de sentido do ponto de vista
das práticas sociais.
Bibliografia.
BATISTA,
Michelangelo Henrique. Ausência de
construção da identidade na criança negra no contexto escolar. Trabalho de Conclusão de Curso.
Licenciatura em Pedagogia. Universidade do Estado de Mato Grosso -
UNEMAT/Campus – Juara-MT, 2008.
DECRETO
nº 4.886, de 20 de novembro de 2003.
LEI
nº 10.639, de 9 de Janeiro de 2003.
SÃO
PAULO (SP). Secretaria Municipal de Educação. Diretoria de Orientação Técnicas. Orientações Curriculares: expectativas de aprendizagem para a
educação étnico-racial na educação infantil, ensino fundamental e médio. São
Paulo: SME/DOT, 2008.
Schwarcz, Lilia Moritz. Nem preto
nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade. in Novais, Fernando A (org.). História da Vida Privada no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
Sugestão de leitura:
Sugestão de leitura:
O preconceito
étnico, a intelectualidade e o projeto nacional. Brasil, final do século
XIX–início do século XX.
Imperialismo
europeu na África do século XIX.
O resgate da
identidade nacional: cultura e fato histórico.