Patrimônios da Humanidade

Patrimônios da Humanidade

16 agosto 2011

Sobre as origens da educação pública, nacional e estatal. França, séculos XVIII-XIX.


Sobre as origens da educação pública, nacional e estatal. França, séculos XVIII-XIX.
Percursos Históricos, Ano I, vol. ago., série 16/08, 2011.
SOARES, Marilda

Na França, desde a época moderna, houve movimentos em prol da educação pública, representados primeiramente pelos enciclopedistas.
Até 1762 o modelo educacional vinha sendo determinado principalmente pelas congregações religiosas, mas a supressão da Companhia de Jesus motivou a criação de um novo tipo de educação. Ao mesmo tempo, as publicações de O Contrato Social e Emílio, de 1762, de Jean-Jacques Rousseau, contribuíam para a mudança de concepção quanto à atuação do Estado sobre a educação.
Em O Contrato Social, questionando o governo e suas funções, Rousseau propõe:
Que é, portanto, o governo? Um corpo intermediário, estabelecido entre os vassalos e o soberano, para possibilitar a recíproca correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil como política (ROUSSEAU, 1978, p. 65)

E sobre a educação, afirma:
. [...] é fácil ver que entre as diferenças que distinguem os homens, inúmeras delas passam por naturais e são, no entanto, unicamente obras do hábito e dos diversos gêneros de vida, adotados pelo homem em sociedade [...]. O mesmo acontece com as forças do espírito; e a educação não apenas cria a diferença entre espíritos cultivados e os que não são, como aumenta a existente entre os primeiros em proporção de cultura [...] (ROUSSEAU, 1978, p. 172)
Em Emilio, assegura:
Nascemos fracos, precisamos de forças, nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer, e de que precisamos adultos, é-nos dado pela educação (ROUSSEAU, 1995, p. 10).

Em 1763, Luis-René de Caradeuc de La Chalotais, ministro da Bretanha, publicou Essai d'éducation nationale, criticando a educação jesuítica e propondo uma educação pública nacional ao afirmar que ao Estado pertence o direito inalienável de instruir seus membros e
[...] o bem público, a honra da nação, exige que se substitua o ensino religioso por uma educação civil, que se prepare cada geração para desempenhar com êxito as diferentes funções do Estado” (apud LUZURIAGA, 1959, p.33).

Mas La Chalotais não cogitava sobre a educação igualitária, e sim sobre a educação útil ao Estado. Segundo ele, o bem da sociedade requer que os conhecimentos do povo estejam restritos às suas ocupações. Pensava, contudo, na separação entre as funções educativas da Igreja e do Estado, reiterando que à Igreja compete o ensino das leis divinas e ao Estado o da moral. O ensino laico e a educação moral viriam a ser temas polêmicos e debatidos por diversos teóricos e educadores dos séculos XIX e XX.
No final do século XVIII, no período revolucionário, consolidam-se as discussões em torno da implantação da educação pública nacional, cuja realização dar-se-ia ao longo do século XIX. Ao objetivar formar o cidadão, a organização da educação pública passou a enfatizar o ensino cívico, assumindo um caráter popular com prioridade para o ensino elementar. Robespierre, Danton, Mirabeau, e outros expoentes da Revolução, ocuparam-se da reforma educacional com interesse.
Durante a fase da Assembléia Constituinte, Mirabeau, defensor da educação pública, elaborou discursos sobre o tema defendendo o princípio da liberdade de ensino para os mestres. Em seu plano de educação nacional, as escolas primárias constituiriam o ensino de primeiro grau; o liceu nacional, o segundo grau; e a Academia Nacional, o terceiro. Mas Mirabeau não pregava o laicismo ou a neutralidade religiosa, nem o ensino primário gratuito ou obrigatório. Afirmava que o dever do legislador era apenas de proteger o progresso da educação sem interferir nas questões do ensino. Segundo ele, se o poder público dirigisse e inspecionasse as escolas públicas, a educação e o ensino estariam subordinados às suas opiniões ou, antes, à de seus ministros, as quais nem sempre estão coerentes com os interesses do povo.
Após vários projetos e debates, um artigo da Constituição de 1791 proclamou a educação como assunto nacional e abarcou três dos caracteres fundamentais da educação pública contemporânea: a universalidade, a gratuidade e a criação de estabelecimentos pelo poder público.
No ano seguinte, durante a Assembléia Legislativa, surgiu o projeto de Condorcet - como o de Talleyrand, nunca discutido -, considerado uma obra clássica da educação pública e da pedagogia política. Condorcet, um dos protagonistas da Revolução Francesa, era cientista, filósofo, político e secretário da Assembléia Legislativa, onde expôs, em 21 de abril de 1792, seu projeto educacional intitulado Rapport sur l'instruction publique, aprovado em agosto do mesmo ano. O projeto de decreto apresentava-se sob a forma de um relatório sobre a natureza e os fins da instrução pública, a instrução comum para crianças e adultos, a instrução profissional e científica. Nele, Condorcet expressa sua convicção no infinito progresso do homem ao longo dos estágios históricos, julgando ser esta a forma de estirpar a desigualdade entre as classes e as nações. Ele defende a instrução comum e laica para todos sob os cuidados do Estado, condensando toda a ideologia pedagógica da Revolução Francesa nos princípios de universalidade, igualdade e oficialização da educação, sem admitir a obrigatoriedade, visto que, naqueles tempos, esta era considerada contrária aos princípios liberais. Mas, prega a gratuidade do ensino de todos os graus e o estabelecimento de um sistema de bolsas de estudo para os alunos mais destacados; introduz, ainda, o princípio do laicismo pedagógico.
Segundo Condorcet, era necessário
Oferecer a todos os indivíduos da espécie humana os meios de prover a suas necessidades, assegurar seu bem-estar, conhecer e exercer seus direitos, compreender e cumprir seus deveres; assegurar a cada um a faculdade de aperfeiçoar seu engenho, de capacitar-se para as funções sociais a que há de ser chamado, desenvolver toda a extensão das aptidões, recebidas da natureza, e estabelecer, desse modo, entre os cidadãos, uma igualdade de fato e dar realidade à igualdade política reconhecida pela lei, tal deve ser a primeira finalidade de uma instrução nacional que, desse ponto de vista, constitui para o poder público um dever de justiça. Não se pode admitir na instrução pública um ensino que destrua a igualdade de vantagens sociais [...] e conceda vantagens a dogmas particulares contrários à liberdade de opiniões (apud LUZURIAGA, 1959, p. 56).
A Constituição não pode permitir na instrução pública um ensinamento que, afastando os filhos de uma parte dos cidadãos, destruiria a igualdade das vantagens sociais ... É [...] rigorosamente necessário separar da moral os princípios de qualquer religião particular e não admitir na instrução pública o ensinamento de algum culto religioso. Este deve ser ensinado nos templos pelos seus ministros (apud MANACORDA, 1989, p. 251)

Em 1802, já no período napoleônico, os governos foram autorizados a cobrar contribuições para a manutenção do ensino, o que significava a supressão das subvenções do Estado; a questão da obrigatoriedade não foi tocada; os mestres deveriam, a partir de então, ser escolhidos pelos conselhos municipais; a fiscalização seria realizada pelos subprefeitos administrativos e os municípios próximos poderiam, conjuntamente, fundar escolas. Na lei de maio, de 1806, e no seu complemento, em 1808, o governo francês determinou a subordinação absoluta da educação às idéias políticas governamentais e sua divulgação entre o povo. Segundo afirmava Napoleão, 
Não haverá Estado político firme se não houver corpo docente com princípios firmes. Enquanto não se aprender na infância se deve ser republicano ou monarquista, católico ou religioso, etc., o Estado não constituirá uma Nação; apoiar-se-á em bases incertas e vagas; estará constantemente exposto a desordens e mudanças (apud LUZURIAGA, 1959, p. 59).

Assim, foi criada a Universidade Imperial, que compreendia a totalidade da instrução pública na França, desde as escolas primárias até as superiores, dando à educação um caráter de monopólio estatal, o que foi acentuado pela lei de 1808, segundo a qual nenhuma escola ou estabelecimento de instrução poderia estabelecer-se ou funcionar fora ou paralelamente à Universidade Imperial.
O modelo de instrução pública nacional imposto no período napoleônico foi autoritário, centralizador e monopolizador, precedendo a um modelo geralmente adotado nos regimes totalitários do século XX e em outros que, embora não tenham “dado o salto” para o totalitarismo, cortejaram os modelos organizacionais nazi-fascistas.
Após a Lei de 1833, o partido católico francês deu início a uma campanha pela liberdade de ensino com o intuito de favorecer ao programa de ensino do secundário ministrado pelas ordens religiosas. Mostrava-se a percepção de que a reforma (e suas leis complementares), inicialmente apoiada pela Igreja, visava a hegemonia do Estado sobre a educação.



Em agosto de 1851, após a eleição de Luís Napoleão, um Regulamento modificou a estrutura da educação francesa, conferindo às congregações religiosas as prerrogativas e garantias antes concedidas aos mestres públicos; a gratuidade do ensino foi suprimida; a educação religiosa considerada o principal dever do mestre. A chamada Lei Falloux representou um retrocesso para a educação pública da França e a vitória dos grupos articulados contra o laicismo pedagógico e temerosos do avanço do socialismo.


Em 1864 foi realizado um inquérito sobre a educação, onde se revelou a ineficiência de sua estrutura e métodos, o que teria estimulado o Imperador a pedir a implantação do ensino gratuito e obrigatório e a afirmar ser um dever do Estado assegurar à criança os meios para instruir-se para que, no futuro, pudesse tornar-se útil para a sociedade. Em conseqüência, em 1867 foi apresentado por Victor Duruy um projeto de lei propondo inúmeras reformas para a instrução que, apesar das palavras do Imperador, foi recusado.
Após a proclamação da Terceira República, o governo francês buscou estabelecer um novo projeto político e social, no qual a educação aparecia como instrumento de reconstrução da sociedade. Durante a década de 1870 iniciou-se o processo de criação de escolas públicas visando atingir o número suficiente de vagas para a população infantil e melhorar a situação profissional dos professores.
No final da década, e na seguinte, Jules Ferry, ministro da Instrução Pública, criou o Conselho Superior de Instrução Pública e os Conselhos acadêmicos, implantou o ensino secundário feminino e fundou a Escola Normal de Sèvres para os professores secundários; suprimiu as contribuições escolares na escola pública, estabeleceu a obrigatoriedade e a laicidade do ensino primário; determinou a fiscalização escolas nos municípios; substituiu o ensino religioso pelas aulas de instrução moral e cívica, determinando o ensino religioso facultativo nas escolas particulares. Segundo Jules Ferry, 
Cumpre fazer desaparecer a última e mais temível das desigualdades que vem do nascimento, a desigualdade da educação. Porque há uma distinção fundamental, entre os que receberam uma educação e os que não receberam. Eu vos desafio a fazer jamais dessas duas classes uma nação igualitária, uma nação animada da confraternização de idéias que é a força das verdadeiras democracias, se entre essas duas classes não houve a primeira aproximação, a primeira fusão, resultante da mistura de ricos e pobres nos bancos de uma escola (apud LUZURIAGA, 1959, p. 70).

Em 1886 uma lei decidiu que nas escolas públicas, de toda ordem, somente leigos poderiam ensinar; em 1904, uma nova lei determinou a proibição do ensino às congregações religiosas, ampliando, assim, as medidas em prol da laicização do ensino.
Somente no século XX se consolidaria na França o princípio de educação pública, estatal e nacional idealizado desde o século XVIII.

Bibliografia.

GILES, Thomás Ransom. História da Educação. São Paulo: E.P.U., 1987.
LARROYO, Francisco. História geral da Pedagogia. São Paulo: Mestre Jou, s.d.
LUZURIAGA, Lorenzo. História da Educação Pública. Tradução e notas de Luiz Damasco Penna e J. B. Damasco Penna.  São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959 (Atualidades pedagógicas).
MACHADO, Lucília Regina de Souza. Politecnia, escola unitária e trabalho. 2a. ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1991.  (Educação contemporânea).
MANACORDA, Mário Alighiero. História da Educação. Da Antiguidade aos nossos dias. 2ª ed. São Paulo: Cortez : Autores Associados, 1989, (Educação contemporânea).
NUNES, Ruy Afonso da Costa. História da educação no século XVII. São Paulo: EPU: EDUSP, 1981.
PEREIRA, LUIZ; FORACCHI, Marialice M. Educação e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1987.


ROUSSEAU, Jean-Jacques.O Contrato Social e outros escritos. São Paulo: Cultrix, 1978.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio  ou Da Educação. Rio de Janeiro: Bertrand, 1995.