Patrimônios da Humanidade

Patrimônios da Humanidade

05 julho 2011

Imperialismo europeu na África do século XIX.


Imperialismo europeu na África do século XIX.

Percursos Históricos, Ano I, vol. jul., série 05/07, 2011.


SOARES, Marilda
A África foi sistematicamente invadida por nações em busca de riquezas, de modo que sua população foi submetida a diferentes formas de poder e exploração, justificadas por preceitos religiosos, políticos ou econômicos e mesmo científicos.
No século XIX, os religiosos lançaram-se à conversão dos africanos, como tentativa de salvar suas almas, alguns deles após longo período afirmando que elas não existiam. Os políticos, por sua vez, discursaram em prol do avanço da civilização ocidental, para que atingisse regiões e povos atrasados.
Os cientistas, famintos pela elaboração de teorias que os conduzissem ao reconhecimento público, olharam a África como novo campo de descobertas. Não por acaso, foram abundantes os estudos que levaram à formulação da Teoria da Evolução e às fórmulas pseudocientíficas que geraram a Eugenia e as novas teses racistas.
Naquele período, com a expansão das práticas do liberalismo econômico e declínio do mercantilismo, mais uma vez o “continente negro” presenciou os crimes e as atrocidades promovidas pela cobiça, mas agora legitimados pela preocupação científica de diversos grupos de intelectuais e institutos de pesquisa, bem como pela “legalidade” das decisões tomadas no final do século XIX durante a Conferência de Berlim.
Em todas as medidas adotadas pelos países europeus, e mesmo pelos Estados Unidos, no caso da Libéria, os argumentos estavam vinculados ao antiescravismo, à emancipação do povo africano, ao avanço da civilização.
No século XIX, para a Inglaterra industrial, o tráfico de escravos parecia menos rentável que a exploração do trabalho nas fábricas, ou que a produção de tecnologia, ou, ainda, os investimentos externos.
Até a década de 1830 os navios britânicos mantiveram fatia significativa do comércio de escravos, quando, surpreendentemente, a Inglaterra aboliu o tráfico negreiro e passou a pressionar os países dependentes dos seus investimentos e apoio político a programarem medidas legais e concretas para suprimir o abastecimento de escravos africanos e, gradativamente, abolir a escravatura.
O comércio de escravos, naquele momento, mostrava-se contrário aos princípios do liberalismo econômico, pois era uma das bases de sustentação dos regimes absolutistas, do mercantilismo e do padrão de acumulação das nações escravistas.
A Inglaterra, cuja política e economia interna estavam fundamentadas nos princípios liberais desde o final do século XVII, volta-se ao investimento em uma política antiescravista.
Não obstante esses motivos concretos, quando a escravidão finalmente se extinguiu como economia legal, os britânicos afirmavam sua participação fundamental para o restabelecimento da liberdade e dignidade humana, ao mesmo tempo em que reafirmavam sua virtude democrática.
Após 1860, a França voltou-se também ao “fervor antiescravista”, posicionando-se ao lado da Inglaterra na luta contra a escravidão, ainda mantida nos domínios espanhóis, portugueses e mesmo no Brasil; contra os mercadores traficantes de escravos de qualquer nacionalidade, especialmente os que atuavam nos mercados de Zanzibar.
Este zelo antiescravista, associado ao desejo de expansão dos mercadores consumidores e fornecedores, provocou a ação de exploradores, cientistas, empresas e Estados-nação, todos voltados para a África e seus territórios ainda desconhecidos.
A Bélgica também ambicionava conquistar territórios coloniais e se posicionar entre as grandes nações do século XIX.  O país tornou-se independente em 1830, sob o reinado de Leopoldo I, e após ser dominado politicamente por espanhóis, austríacos, franceses e holandeses, alcançava um ótimo padrão de produção industrial e buscava tornar-se um império.
Com a ascensão de Leopoldo II, em 1865, o projeto de expansão imperialista ganhou novos contornos, uma vez que ele era obcecado pela ideia de possuir uma colônia. Consta que seu livro favorito era Java: como administrar uma colônia.
Certa vez, Leopoldo II escreveu uma carta a um assistente, na qual suas pretensões mostravam-se claramente:
Estou especialmente interessado na província argentina de Entre Rios e na pequena ilha de Martin Garcia, na confluência do Rio Uruguai com o Paraná. De quem é a ilha? Seria possível comprá-la, estabelecer ali um porto livre, sob a proteção moral do Rei dos Belgas? [...] Nada mais fácil do que se tornar proprietário de terras em estados argentinos três ou quatro vezes maiores que a Bélgica. (Apud HOCHSCHILD, 1995).

De acordo com Hochschild, as tentativas de levar a cabo seu projeto foram muitas e, “para ele, as colônias existiam com um só fim: enriquecê-lo e enriquecer a Bélgica”. Assim, investiu no Canal de Suez, interessou-se pelas ferrovias no Brasil, pensou em arrendar o território de Formosa, tentou comprar as Filipinas, mas, não tendo obtido sucesso, voltou-se para a África.
Na década de 1870, a África era uma espécie de “paraíso” para aqueles que estavam dispostos e investir capitais e obter novas fontes de lucro. Portugal, Espanha, Inglaterra e França mantinham seus domínios coloniais e buscavam ampliá-los – os britânicos e bôeres controlavam a África do Sul; portugueses reivindicavam parte do Congo e Moçambique – pois 80% da África ainda sob o controle dos nativos.
Algumas inciativas particulares, nacionais ou empresariais já vinham sendo tomadas para “civilizar” o atrasado Continente Negro.
Um dos mais importantes personagens desse contexto e época foi David Livingstone, médico, garimpeiro, missionário, explorador e Cônsul britânico. A partir de 1840, com o apoio da Royal Geographical Society, de Londres, cruzou a África, da nascente do Nilo à costa oeste, denunciando a escravidão, evangelizando e buscando minérios.
Em 1866, em uma expedição evangelizadora e de combate aos traficantes, Livingstone desapareceu, tendo sido encontrado dois anos depois pelo britânico Henry Morton Stanley, recém-saído da Guerra Civil americana e que se tornaria jornalista do New York Herald, explorador das terras africanas e destaque na Conferência da Berlim.
Em nome da Ciência, da evangelização e do antiescravismo, ações eram planejadas pela Real Sociedade Geográfica, uma importante sociedade de pesquisa científica sediada na Inglaterra.
Leopoldo fez a doação de 100 mil francos para a Sociedade Geográfica  e tornou-se patrono das expedições africanas, um dos seus maiores filantropos, visto que se tratava de uma causa “humanitária”. Era o primeiro passo para as investidas belgas.
O passo seguinte foi a decisão de patrocinar uma conferência de exploradores e geógrafos, a Conferência Geográfica, ocorrida em Bruxelas, em setembro de 1876.
Na ocasião, 13 belgas e 24 estrangeiros hospedaram-se no palácio real e foram recebidos em um salão iluminado por sete mil velas.
Na abertura da Conferência, Leopoldo II assim se pronunciou:
Abrir para a civilização a única parte do globo ainda infensa a ela, penetrar na escuridão que paira sobre povos inteiros é, eu diria, uma cruzada digna deste século de progresso [...]. Pareceu-me que a Bélgica, um país central e neutro, seria o lugar adequado para tal encontro [...]. (Apud HOCHSCHILD, 1995).

Ao final do encontro, os convidados foram condecorados com a Cruz de Leopoldo. Era o terceiro passo.
Foi fundada a Associação Internacional Africana, com os objetivos explicitados pelo Presidente do Comitê Internacional da Associação Internacional Africana, Leopoldo II, Rei da Bélgica:
“Localização de rotas a serem abertas com sucesso pelo interior do continente e a instalação de postos hospitaleiros, científicos e pacificadores, como forma e abolir o tráfico de escravos, estabelecer a paz entre os chefes tribais e fornecer-lhes arbitragem justa e imparcial”. (Apud HOCHSCHILD, 1995).

Tratavam-se, então, de ações humanitárias?
A obra filantrópica de Leopoldo foi comentada por Sanford, um importante empresário norte-americano, em 1883 ou 84. Em comunicado ao Presidente Chester Arthur, dos Estados Unidos, apresentou suas considerações sobre o assunto nos seguintes termos:
O rico e populoso vale do Kongo está sendo desbravado por uma sociedade chamada Associação Internacional Africana, da qual o Rei dos Belgas é presidente [...] Grandes porções de território foram cedidas à Associação pelos chefes nativos, abriram-se estradas, os barcos a vapor já navegam pelo rio e estabeleceram-se os núcleos desses Estados [...] sob uma bandeira que oferece liberdade ao comércio e proíbe o tráfico de escravos. Os objetivos da sociedade são filantrópicos [...]. (Apud HOCHSCHILD, 1995).

No ano seguinte, finalmente, a partilha dos territórios africanos e a concretização dos projetos expansionistas da Bélgica, da França, da Inglaterra..., e também da Alemanha.
Em 15 de novembro de 1884, reuniram-se os representantes das grandes potências na residência oficial de Bismarck, em Berlim. Estavam presentes condes, barões, coronéis e um vizir do Império Otomano. Dentre os convidados, Stanley, o explorador e jornalista, foi ao mapa da África e descreveu a Bacia do Congo, onde havia permanecido cinco anos trabalhando para o Rei Leopoldo II.
Em 26 de fevereiro de 1885 foi assinada a Ata Geral do Congresso de Berlim, da qual fazem parte os seguintes dizeres:
Em nome de Deus Todo-Poderoso [...]  Querendo regular num espírito de boa  compreensão mútua as condições mais favoráveis ao desenvolvimento do comércio e da civilização m certas regiões da África, e assegurar a todos os povos as vantagens da livre navegação sobre os dois principais rios africanos que se lançam  no Oceano Atlântico; desejosos, por outro lado, de prevenir Os mal-entendidos e as contestações  que poderiam originar, no futuro, as novas tomadas de posse nas costas da África, e preocupados ao mesmo tempo com os meios de crescimentos do bem-estar moral e material das populações aborígines, resolveram sob convite que lhes enviou o Governo Imperial Alemão, em concordância com o Governo da República Francesa, reunir para este fim uma Conferência cm Berlim [...]. (ATA GERAL, 1885).

Em 29 de maio de 1885, o passo belga mais importante para o projeto colonialista belga: a criação do Estado Independente do Congo. Depois de 20 anos de investidas, Leopoldo conquistava sua colônia.
Na Ata Geral, já estavam previstas as normas que regulariam as ações das potências que passavam a partilhar o controle da África:
Artigo 6. Disposições relativas à proteção dos aborígines, dos missionários e dos viajantes, assim como a liberdade religiosa. Todas as Potências que exercem direitos de soberania [...] comprometem-se a velar pela conservação das populações aborígines e pela melhoria de suas condições morais e materiais de existência e em cooperar na supressão da escravatura e principalmente no tráfico dos negros; elas protegerão e favorecerão, sem distinção de nacionalidade ou de culto, todas as instituições e empresas religiosas, científicas ou de caridade, criadas e organizadas para esses fins ou que tendam a instruir os indígenas e a lhes fazer compreender e apreciar as vantagens da civilização. [...] A liberdade de consciência e tolerância religiosa são expressamente garantidas aos aborígines como nos nacionais e aos estrangeiros. O livre e público exercício de todos os cultos, o direito de erigir edifícios religiosos e de organizar missões pertencentes a qualquer culto não serão submetidos a nenhuma restrição nem entrave. (ATA GERAL, 1885).

O mundo contemplava com admiração a ação humanitária, especialmente de Leopoldo II, e as nações e empresas interessadas na exploração da região do Congo belga consideravam razoáveis as restrições feitas, pois tinham, em diferentes espaços, a possibilidade de circulação e comercialização.
Em 1890, para contemplar essa obra, George Washington Williams, negro americano, visitou o Congo em busca do paraíso, mas entrou em conflito moral com o que vira.
Williams havia presenciado os dramas da escravidão negra nos Estados Unidos, a Guerra Civil e a própria ação da Ku Klux Klan, fundada em 1865. Ele havia sido soldado na guerra, era formado em Direito, abolicionista, jornalista e pastor da Igreja Batista de Boston. Também era considerado um grande historiador negro do seu tempo após ter escrito História da raça negra na América, de 1619 a 1880. Negros como escravos, soldados e cidadãos, juntamente com uma consideração preliminar da unidade da família humana, um esboço histórico da África e um relato dos governos negros de Serra leoa e Libéria, em dois volumes publicados em 1882 e 1883.
Assim, Williams recebeu do presidente Benjamin Harisson, na Casa Branca, uma missão na África. Algum tempo depois, enviou aos Estados Unidos uma “Carta Aberta” – Carta Aberta a Sua Majestade Sereníssima Leopoldo II, Rei dos Belgas e Soberano do Estado Independente do Congo – que foi publicada em forma de panfleto e circulou pelos Estados Unidos e Europa, denunciando o que viu.  Estava desfeita a imagem humanitária das ações de Leopoldo II na África:
Esses postos piratas, de bucaneiros, obrigam os nativos a lhes fornecer peixes, cabras, aves e verduras sob a mira os mosquetes; e sempre que os nativos se recusam [...] os oficiais brancos aparecem com uma força expedicionária e queimam tudo [...]. O governo de vossa majestade é excessivamente cruel com os prisioneiros, condenando-os, mesmo os que cometeram delitos ínfimos, às correntes. [...] Muitas vezes essas correntes de boi roem o pescoço dos presos, produzindo feridas que ficam infestadas de moscas, o que agrava ainda mais a chaga supurada. [...] o governo de vossa majestade está envolvido com armas e bagagem no tráfico de escravos. Compram-se, vendem-se e roubam-se escravos [...]. (Apud HOCHSCHILD, 1995).

Essa e outras denúncias divulgadas explicitavam a inegável crueldade da investida imperialista, pouco vinculada aos preceitos científicos, religiosos ou humanitários, mas associada à nova lógica da sociedade industrial.
Diante dessa lógica, os Estados-nação estavam convictos de que a continuidade econômica e política dependia da extensão dos domínios, da conquista incessante de mercados para alimentar a produção e a circulação de mercadorias industriais, bem como de novos espaços territoriais em que se pudesse realizar investimentos vultosos, evitando a ociosidade do capital.
O avanço da ciência e da tecnologia, na Segundo Revolução Industrial, criavam novas expectativas de ganho, e distanciavam, cada vez mais, os países ricos e pobres, como os africanos.
O rápido crescimento econômico de países como a Alemanha e os Estados Unidos, por exemplo, levavam essas nações a buscar pontos de apoio em outras partes do mundo, modificando o equilíbrio de forças até então existente.
Por outro lado, a primeira Grande Depressão, das décadas de 1870 e 1890, representou um entrave à continuidade da acumulação capitalista e é nesse contexto que se dá a formalização da Partilha da África, como uma saída segura e lucrativa para a crise econômica.
As nações imperialistas eram dependentes dos produtos fornecidos pelas colônias, fossem alimentos ou matérias-primas, e dos empreendimentos nelas desenvolvidos.
Como afirmou Geoffrey Barrachough,
Em 1876, não mais de um décimo da África era controlado por potências européias; durante a década seguinte, arrogavam-se a posse de cinco milhões de milhas quadradas de território africano, contendo uma população superior a sessenta milhões; e, em 1900, nove décimos do continente já se encontravam sob controle europeu. (BARRACLOUGH, 1987).

 Surgiam as doutrinas econômicas e políticas de cunho neomercantilista, que ganharam impulso na França, Alemanha, Rússia, Estados Unidos e Inglaterra por defender o princípio de que cada país industrial, para ser autossuficiente, deveria possuir um império colonial protegido da concorrência externa.
Assim, os antigos colonizadores africanos procuraram manter seus domínios: a Espanha ficou com Marrocos espanhol, Rio de Ouro e Guiné espanhola; Portugal, com Moçambique, Angola e Guiné portuguesa. Os novos colonizadores adquiriam e ampliaram seus domínios: a Bélgica conquistou o Congo; a França, depois da Argélia, conquistou Tunísia, África Ocidental francesa, África Equatorial Francesa, Costa francesa dos Somalis e Madagascar; a Inglaterra dominou Egito, Sudão Anglo-Egípcio, África Oriental inglesa, Rodésia, União Sul-Africana, Nigéria, Costa do Ouro e Serra Leoa; a Alemanha dominou Camarões, Sudoeste Africano e África Oriental alemã; e a Itália conquistou Eritréia, Somália italiana e o litoral da Líbia.
As palavras de Chamberlain traduzem aquele contexto: "O dia das pequenas nações já passou há muito; chegou o dia dos Impérios” (Apud BARRACLOUGH, 1987).
A pressão pela expansão ultramarina correspondia não apenas a projetos imperialistas de extensão política, mas, sobretudo, de dimensão econômica. Aliás, política e economia não podem ser pensadas separadamente quando se procura compreender os movimentos do período neocolonial.


Bibliografia.
ATA GERAL REDIGIDA EM BERLIM EM 26 DE FEVEREIRO DE 1885. Disponível em: www.casadehistoria.com.br/sites/default/files/conf_berlim.pdf
BARRACLOUGH, G. Introdução à História Contemporânea. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. Disponível em: www.scribd.com/.../Geoffrey-Barraclough-Introducao-a-Historia-Contemporanea.
HERNANDEZ, Leila Maria Gonçalves Leite. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005.
HOBSBAWM, E. Era dos Impérios (1875-1914). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
HOCHSCHILD, Adam.  O fantasma do Rei Leopoldo. Uma história de cobiça, terror e heroísmo na África Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
ISNENGHI, Mário. História da Primeira Guerra Mundial: século XX. São Paulo: Ática, 1995.
MESGRAVIS, Laima. A colonização da África e da Ásia: a expansão do imperialismo europeu no século XIX. São Paulo: Atual, 1994.