Memória, PATRIMÔNIO
e diversidade: perspectivas para a construção da identidade individual e
coletiva[1].
Percursos Históricos, Ano II, vol. jan., série 02/02, 2013.
SOARES, Marilda[2]
Resumo:
O
texto descreve o pensamento que norteou a elaboração do Projeto de Extensão
Memória e Patrimônio: O Ensino de História e os Acervos Escolares, realizado
pela Universidade de São Caetano do Sul (USCS), em 2012, em parceria com o Plano
Nacional de Formação dos Professores da Educação Básica (PARFOR), financiado
pelo Ministério da Educação e Cultura, cujo objetivo foi apresentar aos
professores novas possibilidades de abordagem da memória, do patrimônio, da
identidade e da diversidade cultural, como conceitos a serem incorporados ao
trabalho docente e à formação dos alunos do Ensino Fundamental e Médio. O Curso
estruturou-se para dar ênfase aos temas: I. Memória e História; II. Patrimônio histórico e preservação; III. Historiografia didática e memória; IV História
oral e memória; e V. Registro e análise da
memória escolar. Com base
nessas temáticas, o artigo aborda a produção cultural e sua permanente
renovação entre os grupos humanos, por meio da tradição, das linguagens, das técnicas,
dos ritos e celebrações; trata da preservação dessa herança, ou patrimônio
cultural, como aspecto dependente da valorização social e da ação dos poderes
públicos, que administram os bens reconhecidos como importantes para uma
comunidade ou nação, por meio da elaboração de leis, regulamentos, normas e
práticas que impeçam sua destruição, bem como por ações educativas que
contemplem essa valorização.
O objetivo central da reflexão é apontar para o fato de que as produções culturais relacionam-se com a construção da memória individual e coletiva, e são criadoras e suportes do sentimento de identidade entre todos que as comemoram e preservam. Conceitua as produções culturais de ordem popular e erudita, materiais e imateriais, bem como as abordagens teórico-metodológicas atuais acerca da temática em destaque. Enfatiza a necessidade de uma educação patrimonial e de uma formação identitária que contemplem as diferentes produções culturais, no sentido de expor a diversidade como integrante das relações interpessoais, característica e riqueza dos diferentes povos e sujeitos sociais. Procura ressaltar a relevância e urgência de se pensar, na escola, a igualdade, a justiça e os direitos, para que não sejam apenas expressões destituídas de sentido do ponto de vista das práticas sociais, mas partes constitutivas das múltiplas identidades que permeiam os processos de formação dos indivíduos, povos e grupos de convívio.
O objetivo central da reflexão é apontar para o fato de que as produções culturais relacionam-se com a construção da memória individual e coletiva, e são criadoras e suportes do sentimento de identidade entre todos que as comemoram e preservam. Conceitua as produções culturais de ordem popular e erudita, materiais e imateriais, bem como as abordagens teórico-metodológicas atuais acerca da temática em destaque. Enfatiza a necessidade de uma educação patrimonial e de uma formação identitária que contemplem as diferentes produções culturais, no sentido de expor a diversidade como integrante das relações interpessoais, característica e riqueza dos diferentes povos e sujeitos sociais. Procura ressaltar a relevância e urgência de se pensar, na escola, a igualdade, a justiça e os direitos, para que não sejam apenas expressões destituídas de sentido do ponto de vista das práticas sociais, mas partes constitutivas das múltiplas identidades que permeiam os processos de formação dos indivíduos, povos e grupos de convívio.
Palavras-chave: Memória,
Identidade, Patrimônio, Valores, Representações.
Financiamento: FNDE/MEC –
PARFOR
A temática da Memória
envolve a ideia de manutenção das produções humanas, dos saberes, valores e dos
feitos produzidos ao longo do tempo pelos diferentes sujeitos sociais. Interessante
notar que essa é a própria função da História, desde seu nascimento, como
afirmou Heródoto, há cerca de 2.500 anos – quando publicou o primeiro livro que
recebeu o nome de História – ao definir como seu objetivo a
investigação e a preservação do conhecimento sobre as ações humanas, para que
sua memória não se perdesse com o tempo.
Memória é fonte de
conhecimento que abarca as reminiscências individuais ou coletivas, os
documentos em diferentes suportes e os monumentos. Enfim, tudo o que os grupos
humanos elegeram para ser mantido e deixado para as gerações futuras, o que
pressupõe processos de escolha dos valores mais significativos, sejam materiais
ou imateriais, e que devem ser lembrados, memorados em grupo, ou comemorados
pelas sociedades, como parte de uma herança comum, um legado a ser preservado. Mas
a preservação das produções humanas depende da valorização dos legados
culturais, da identidade individual e coletiva, do patrimônio, do
pertencimento.
Assim, é fundamental que
os indivíduos tenham acesso à Educação, ao conhecimento das diferentes
produções humanas, e que, ao mesmo tempo, encontrem nessa Educação espaço para
se sentirem representados nos conteúdos educativos, como parte integrante da
sociedade, criando o sentimento de pertencimento ao seu mundo e ao seu tempo.
Memória
e Patrimônio cultural.
Memória é palavra de
origem latina, memor, que significa
“aquele que se lembra”. Ou grega, mnemo,
que apresenta o mesmo sentido de preservação de reminiscências.
Patrimônio é palavra de
origem latina, patrimonium, que no
princípio constituía o domínio do chefe familiar (pater famílias), sobre os bens materiais, bem como sobre sua esposa
e filhos, seus servos, escravos, terras e demais riquezas.
Na Idade Contemporânea, o
termo “patrimônio” passou a significar a herança cultural e natural que tem
sido preservada por determinado povo ou pela humanidade, e a palavra “memória”
passou a abarcar todas as formas de registo de feitos, sentimentos ou eventos,
de tal forma que não podem ser compreendidas separadamente.
Patrimônio cultural é o
conjunto das produções culturais expressivas para uma sociedade, contidas nos
saberes, técnicas, formas e signos produzidos pelos grupos humanos, e que
auxiliam na construção, manutenção ou transformação da identidade e da memória
coletivas.
O termo “herança cultural”
passou, contemporaneamente, a ser utilizado para definir o patrimônio cultural,
referindo-se a todas as produções culturais, materiais ou imateriais,
preservadas pelas gerações passadas e transmitidas às novas gerações em
diferentes suportes: construções, artefatos, arte, filosofia e ciência. E, nas
últimas décadas. a tradição, os ritos, as técnicas, os costumes, os padrões
comportamentais e outras formas de expressão cultural também passaram a ser
valorizados como parte dessa herança cultural.
Cultura
material e cultura imaterial.
A cultura material abrange
as produções tangíveis, ou seja, que têm materialidade, que podem ser tocadas,
como os edifícios, monumentos, mobiliário, peças de vestuário, e tudo mais que
é fabricado com função utilitária ou simbólica.
Os objetos da cultura
material são denominados artefatos, palavra de origem latina, ars, criação ou habilidade, e factum, derivado de factus,
feito, derivado de facere, o ato de
criar, produzir o novo. Assim, não importa se objetos raros e caros – uma
grande construção em estilo neogótico, pinturas renascentistas, objetos de
cristal da Bavária – ou comuns, com valor utilitário – pratos e talheres de uso
cotidiano, tijolos em adobe ou copos descartáveis – todos são igualmente
produtos da cultura material.
Esses produtos contêm
significados que podem se referir ao corpo individual ou ao corpo social, mas
em geral, são preservados como forma de manutenção dos referenciais de
identidade. Assim, todos os artefatos contêm e expõem os recursos naturais ou
industriais disponíveis, as técnicas, os valores estéticos, as cores, as
formas, os gostos de cada tempo e lugar, bem como signos de identidade
coletiva.
Um exemplar, aparentemente
simples, pode conter elementos fundamentais para a decifração dos valores
humanos, como é o caso dos cachimbos usados por africanos e afrodescendentes no
Brasil escravista. Trata-se de objetos
decorados com símbolos das etnias e que, por serem desconhecidos, escapavam ao
controle imposto, representando um ato de resistência cultural.
Dentre os produtos da
cultura material têm maior visibilidade as grandes construções, os monumentos
que são lugares da memória coletiva, dentre os quais estão antigas e novas “maravilhas”
do mundo e as ruínas de antigas
civilizações construídas há milhares de anos e preservadas pela população local
e pela humanidade.
Monumento, do latim monumentum, lembrança ou memorial,
derivada de monere, lembrar,
advertir, ou manere, permanecer,
representa o testemunho de um tempo histórico. Dessa forma, a palavra monumento
é um conceito que se aplica aos marcos de visibilidade dos sítios históricos e
arqueológicos, como também às produções de pequena dimensão, pois grandes os
pequenos, os artefatos são exemplares de cultura material e de cultura
imaterial.
Em uma grande construção, por
exemplo, uma catedral, há várias produções culturais materiais e imateriais,
como o saber-fazer de todos os que nela trabalharam, desde as primeiras ideias,
o projeto arquitetônico, a produção e assentamento dos tijolos, as esculturas e
objetos sacros que compõem a decoração dos altares. Além disso, nas formas de
utilização, durante os cerimoniais, estão contidos os diferentes saberes
ligados à religiosidade, à liturgia e aos rituais que se realizam ali.
A expressão “cultura
imaterial” refere-se a todos os
saberes, pensamentos, crenças e concepções de mundo, expressando-se na obra de
arte, nos tratados filosóficos, jurídicos, científicos, didáticos ou
religiosos, como no saber-fazer cotidiano, na dança popular, no bordado, na culinária,
nas práticas construtivas, nas formas de expressão e até na gestualidade.
Interpretação
do patrimônio e das produções culturais.
Há estudos voltados à
análise e compreensão dos signos e representações contidos nas produções
culturais e o modo como são apreendidos individual ou socialmente.
Esse campo de investigação
é denominado Semiologia e/ou Semiótica, palavras vindas do grego semeîon, que se origina na palavra sema, ou seja, sinal, signo, símbolo ou
representação. Assim, a Semiologia e a Semiótica abrangem estudos do conteúdo
simbólico das produções culturais humanas, materiais ou imateriais.
Charles Pierce, teórico da
Semiótica, preocupado com a compreensão linguística, procurou sistematizar os
passos para a compreensão dos signos e definiu: em primeiro lugar, é necessária
a capacidade de observar, admirar; em segundo lugar, de identificar as
características do que está sendo observado; e em terceiro lugar, da comparação
com outros signos observados, para generalização dos aspectos identificados.
Essa definição encontra
ressonância nos estudos de Semiologia. Em A Moral dos Objetos, Jean Baudrillard
propôs o entendimento dos signos, dos significados dos artefatos, pois segundo
ele, além da materialidade, dos caracteres físicos como matéria-prima, forma e
cor, os objetos são dotados de finalidades, representações e significados
individuais e sociais.
As produções pictóricas,
por exemplo, quando retratam pessoas muitas vezes procuram vinculá-las a
objetos que sejam representativos de moda, gosto ou status social,
estabelecendo ou expondo signos e representações de lugar e prestígio social.
Um objeto ou construção,
por exemplo, precisam ser observados para que se possa decifrar o sentido de
sua existência, pois há uma multiplicidade de informações contidas nos
artefatos e monumentos, que são documentos a informar sobre técnicas e relações
sociais.
Quando um objeto (cultura
material) e/ou um saber (cultura imaterial)
são reconhecidos como patrimônio, ou seja, um bem coletivo, os poderes
públicos realizam o ato administrativo de tombamento para preservar seu valor
histórico, artístico, urbanístico, ambiental, identitário ou afetivo.
Por essa razão, tanto
móveis, quanto imóveis, fotografias, monumentos, estradas, pontes, cemitérios,
pratos da culinária, festas folclóricas, saberes populares podem ser tombados,
assim como jardins, cascatas e florestas e espaços de culto religioso.
Compreender os objetos,
suas formas, funções e significados, é uma das tarefas dos especialistas em
cultura, como os antropólogos, arqueólogos, museólogos e artistas plásticos.
O estudo dos artefatos
pode conduzir ao entendimento do conhecimento técnico de certa época histórica,
de certa cultura, de certo lugar. Do mesmo modo, pode revelar os padrões
estéticos, as possibilidades técnicas e até as formas de constituição do status
social, pois existem aqueles que produzem os objetos, aqueles que se apropriam
dos objetos e aqueles que os utilizam.
Desconstrução
da perspectiva tradicional.
Nossa sociedade
tradicionalmente valoriza os produtos da cultura erudita, chamada pelo senso
comum simplesmente de “cultura”, enquanto as manifestações populares e espontâneas
são (des)qualificadas como inferiores, por não terem sido elaboradas nos meios
acadêmicos.
Do mesmo modo, as
produções dos grupos sociais minoritários ou dominados foram sistematicamente
inferiorizadas, estereotipadas e/ou marginalizadas, consideradas como menores
frente aos produtos da Filosofia, Ciência e Literatura, próprios dos meios
acadêmicos e acessíveis, muitas vezes, apenas aos meios sociais elitizados.
É preciso, portanto,
vencer o desafio de desconstruir a História e a Educação tradicionais, e
acrescentar uma visão crítica à formação dos professores, que têm
responsabilidade, juntamente com a família e a sociedade, pela formação
identitária que valorize e preserve a multiplicidade de manifestações
socioculturais dos diferentes grupos humanos.
A partir da elaboração dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e do Referencial Curricular Nacional
para a Educação Infantil (RCNEI), as temáticas da identidade, da pluralidade e
da diversidade étnica e cultural ganharam espaço nos currículos escolares.
Os PCN apontam a
necessidade de abordar a pluralidade e a diversidade nos seguintes termos:
Este tema propõe uma concepção da sociedade
brasileira que busca explicitar a diversidade étnica e cultural que a compõe,
compreender suas relações, marcadas por desigualdades socioeconômicas, e
apontar transformações necessárias. Considerar a diversidade não significa
negar a existência de características comuns, nem a possibilidade de
constituirmos uma nação, ou mesmo a existência de uma dimensão universal do ser
humano. Pluralidade Cultural quer dizer a afirmação da diversidade como traço
fundamental na construção de uma identidade nacional que se põe e repõe
permanentemente, e o fato de que a humanidade de todos se manifesta em formas
concretas e diversas de ser humano (BRASIL, 1997, p. 16).
A formação
histórico-social do Brasil passou a ser tratada em tais documentos a partir da
perspectiva da pluralidade étnica e cultural, apontando e valorizando os povos
que formaram o Brasil com seu legado étnico e linguístico, desde os tempos da
colonização até a atualidade, com diferentes origens nacionais, como
integrantes do processo de formação do Brasil.
A própria hierarquização
da sociedade passa a ser pensada como fruto do processo de dominação, explicada
historicamente pelo contexto da colonização e da escravidão, com desdobramentos
que ainda se mostram nas diferenças econômicas, políticas e socioculturais que
reforçam estereótipos e preconceitos que precisam ser superados.
Como afirma Antonia Nayakama, a versão europeia da
História brasileira deixou de contemplar o aspecto da diversidade, constituindo
uma imagem negativa dos ameríndios e afrodescendentes, de modo que hoje é
necessário descontruir essa visão, por meio da valorização da pessoa e da
promoção da igualdade (NAYAKAMA, 2007, p. 126).
O ambiente e o
currículo escolar favorecem a identificação da pluralidade de indivíduos, povos
e culturas, a existência de diferentes grupos humanos com seus hábitos,
costumes, crenças, gestos, gostos, origens, etc. Assim, é fundamental a
ampliação das noções de identidade e alteridade, e que o aluno se perceba como
integrante dessa diversidade, para que possa desenvolver posturas éticas,
respeitosas, solidárias e humanizadas.
Do ponto de vista da legislação educacional brasileira, a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº 9394, de 1996, no artigo 27,
determina que os conteúdos curriculares da educação básica devem observar, como
diretriz, os direitos dos cidadãos, o respeito ao bem comum e à ordem
democrática. Mais à frente, na Seção II – Da Educação Infantil, o artigo 29
define que a Educação Infantil, como primeira etapa da Educação Básica, tem por
objetivo o desenvolvimento físico, psicológico, intelectual e social da
criança, ou seja, seu desenvolvimento integral (BRASIL, 1996, pp. 11-12).
As Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 1998, p. 1), no seu artigo 3º,
determinam que todas as instituições de Educação Infantil do país deverão
respeitar, como fundamentos norteadores, a ética, a solidariedade, o respeito,
os direitos e deveres de cidadania, a ordem democrática e os princípios
estéticos da sensibilidade e da diversidade de manifestações artísticas e
culturais.
Devido
à dificuldade de ultrapassar a mentalidade excludente, resquício das práticas
escravistas do Brasil colonial e imperial, foram necessários muitos embates
pelo direito, pela democracia, pela cidadania, o que se mostra, hoje, em
conquistas como a Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que determina, no artigo
26-A, que nos níveis fundamental e médio, em estabelecimentos oficiais ou
particulares, é obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira,
incluindo a História da África e dos africanos e afrodescendentes e sua
contribuição para a formação da sociedade nacional brasileira (BRASIL, 2003).
Construção
da identidade e respeito à diversidade.
A educação para a construção da identidade e do respeito à diversidade
está assentada no exercício da cidadania e da valorização dos indivíduos,
independente de cor, raça, sexo, religião ou outros aspectos que os
diferenciem, e é parte de um processo que não se realiza em pouco tempo. Isso
porque, como afirmou Lilia Schwarcz (1998), as práticas excludentes, por não
fazerem parte e uma política discriminatória oficial, são consideradas
minoritárias ou excepcionais, mas que são, na verdade, comuns e reincidentes.
Como afirma José Carlos
Libâneo, no artigo As Diretrizes Curriculares da Pedagogia – Campo
Epistemológico e exercício profissional do Pedagogo, não é a escola que produz
as desigualdades sociais básicas, mas ela pode reproduzir formas de
discriminação de gênero, étnica ou intelectual. Por essa razão, o autor afirma:
Todo educador que tem clareza do seu papel social e político sabe que a
escolarização básica obrigatória tem um significado educativo, político e
social, implicando o direito de todos, em condições iguais de oportunidades, ao
acesso aos bens culturais, ao desenvolvimento das capacidades individuais e
sociais, à formação da cidadania, à conquista da dignidade humana e da
liberdade intelectual e política. (LIBÂNEO, 2005).
A publicação Orientações
Curriculares: expectativas de aprendizagem para a educação étnico-racial na
Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio (SÃO PAULO, 2008), apresenta a
proposta de que os professores trabalhem noções e conceitos fundamentais para a
desconstrução e superação do preconceito:
A
identidade étnico-racial no Brasil e nas demais sociedades multiculturais,
poliétnicas e plurirraciais é um fator de escolha e de posicionamento político
dos indivíduos e grupos da sociedade, já que é vivida e percebida em um
contexto dinâmico de relações (SÃO PAULO, 2008, p. 35).
Assim, essas
orientações curriculares propõem a abordagem das noções de estigma, estereótipo, marginalização,
preconceito, racismo, negro, mulato, afro-brasileiro e afrodescendente em todas
as etapas de escolarização (SÃO PAULO, 2008, pp. 35-40).
Estigma e
estereótipo constituem-se segundo as mesmas premissas socioculturais, marcando
social e culturalmente os indivíduos e grupos humanos e tornando-os
estigmatizados, pois marca pejorativamente pelas características físicas, culturais,
sexuais, religiosas ou outras.
A discriminação se estabelece pela não aceitação da diferença,
seja esta de ordem social, étnico-racial, religiosa, cultural, econômica,
política, linguística ou fenotípica. É com base nessa diferença que um
indivíduo que não compreende ou respeita a diversidade discrimina outro, na
medida em que este outro não participa do seu grupo próximo ou, ainda, não tem
com ele qualquer vínculo identitário.
Preconceito é
um termo próximo aos conceitos de estigma, estereótipo e discriminação, em que
o conceito prévio sobre o “outro” determina o afastamento ou a aersão ao outro,
atitudes muitas vezes calcadas em informações falsas ou crenças infundadas.
Esses processos de inferiorização e exclusão o “outro”,
enquanto pessoa ou cultura, são denominados marginalização, impondo a
inferiorização ou exclusão da vida social, econômica, política, cultural, ou
seja, colocando-o à margem do sistema e das relações cotidianas.
Propondo a superação de tais perspectivas excludentes, as
Orientações Curriculares apontam:
É fundamental que atentemos para outros tipos de inclusão sejam feitas nas
escolas, especialmente a questão racial, que em um discurso “politicamente
correto” não existe, mas que ao se olhar de perto sabemos que permeia o
ambiente escolar, de forma velada ou explícita, porém, presente. Precisamos
atentar prioritariamente à educação infantil, pois atitudes rotineiras, meias
palavras ou gestos involuntários podem representar a máscara do preconceito
exibida por nossa sociedade e deixar marcas significativas na educação das
crianças pequenas (SÃO PAULO, 2008, p. 84).
Para tanto, é essencial a construção valorativa das
histórias dos povos que formaram cultural e historicamente a nação brasileira,
sem distinção ou preconceito.
Os avanços, quanto à mudança de mentalidade já podem ser notados, pois
além de parâmetros, diretrizes, orientações e materiais didáticos específicos
para abordar a questão étnico-racial, o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD)
determinou que sejam excluídos de suas publicações os materiais que veicularem
estereótipos e preconceitos de condição social, étnico-racial, de gênero, de
orientação sexual, de idade ou de linguagem, assim como qualquer outra forma de
violação de direitos.
Memória, patrimônio, identidade e diversidade.
A formação dos valores
éticos e das atitudes positivas frente à diversidade de manifestações
culturais, étnicas, humanas e de solidariedade inclui-se nos objetivos do
processo de ensino-aprendizagem, desde a Educação Infantil até os mais elevados
níveis de escolaridade. Porém esta é uma construção possível somente a partir
do desenvolvimento de conteúdos conceituais e atitudinais, relacionando-se à
percepção da própria identidade e ao respeito à alteridade e à identidade do
“outro”.
É fundamental iniciar esse
trabalho na Educação infantil, pois o respeito é algo que se constrói ao longo
da vida, não apenas na idade adulta. Além disso, a sociedade brasileira é o
resultado de um processo de formação histórico-social no qual estiveram
presentes diferentes povos e culturas, tendo a miscigenação e a diversidade
como uma das suas principais características.
Os educadores podem
introduzir atividades que permitam a percepção da diversidade do povo
brasileiro, e dos demais povos, como atributo constitutivo das nacionalidades e
dos grupos de convívio. Do mesmo modo, estabelecer as noções de identidade e
alteridade. E, para tanto, esses conhecimentos devem fazer parte da formação
docente.
Os estudos realizados
atualmente sobre a formação docente e o processo de ensino-aprendizagem apregoam
mudanças na concepção de educação e da sua relação com a construção de uma
sociedade inclusiva, o que pressupõe uma educação patrimonial, de valorização
das manifestações culturais e da diversidade, no sentido de favorecer a
compreensão do “eu” e do “outro”, ressignificando os conteúdos escolares.
Sobretudo, é fundamental
que se crie na escola um ambiente favorável à preservação da memória, não
apenas da memória dos objetos raros musealizados, ou dos “grandes” eventos da
História da humanidade, mas também da memória local, individual e da própria
unidade de ensino, incluindo o próprio aluno como sujeito da História, um ser
atuante e produtor de saberes e cultura, com um lugar único e importante no
mundo, um sujeito histórico de seu tempo.
Concluindo.
Trabalhar com os conceitos
de memória, cultura, patrimônio, identidade e de diversidade pressupõe a
abordagem da alteridade, da percepção do “outro” e das diferenças entre os
indivíduos ou grupos. Mas é fundamental que se diga que a percepção das
diferenças não significa a negação, exclusão ou eliminação do “outro”.
Contudo, em sociedades e
épocas históricas nas quais a oposição entre os grupos humanos foi a base do
processo de definição das formas de poder, houve a eleição da alteridade, da
diferença, como critério para a afirmação de princípios de superioridade
sociocultural, legitimando a opressão, a violência e mesmo a eliminação física
de certos indivíduos ou grupos humanos.
Na sociedade atual, vemos
o surgimento de grande quantidade de grupos, muitas vezes denominadas “tribos”,
que afirmam suas identidades por meio de roupas, cabelos, gostos musicais etc.
Do mesmo modo, podemos constatar a agregação de indivíduos a grupos, abertos ou
fechados, que comungam preceitos religiosos, filosóficos, profissionais ou
outros.
Esse é um processo que se
faz e refaz constantemente, em todo tempo e lugar. Dessa forma, é apropriado
abordar em sala de aula a temática e auxiliar o aluno a construir a noção e o
conceito de pertencimento, discutindo as várias formas de inserção cultural,
étnica e social, como um caminho possível para a valorização das identidades
individuais e coletivas dos alunos.
Poder-se-ia definir
identidade como a identificação de um indivíduo ou grupo social com um ou mais
aspectos ou características individuais ou coletivas, a partir da percepção das
produções materiais e imateriais humanas e a noção de pertencimento, abordando
as identidades étnica, cultural, nacional e tantas outras. Essas temáticas são
fundamentais para a construção do indivíduo, no que se refere à percepção de si
no mundo.
E esta é uma tarefa que
deve ser iniciada na Educação Infantil, contribuindo para a estruturação da
personalidade e do caráter, formando para o exercício da cidadania plena. Daí a
importância de tais concepções fazerem parte da formação docente, de modo
efetivo, para que a constituição da identidade, individual o coletiva, seja
pensada como um processo cultural permanente e dinâmico. Felizmente, em épocas
mais recentes, vimos surgir leis contrárias às práticas excludentes, como
expressão de uma vontade política de rever e superar as diferentes formas de
preconceito incorporadas e reproduzidas nas relações sociais.
A sociedade brasileira é
fruto do convívio de diferentes povos e do processo de miscigenação. Dessa
forma, é necessário o estabelecimento de projetos educativos que favoreçam a
superação dos preconceitos e valorizem as características culturais e
históricas de todos os integrantes da sociedade. E, para tanto, é fundamental
que as crianças, desde cedo, possam refletir sobre as diferenças, incorporando
a noção de alteridade, não no sentido de discriminar, mas de respeitar o “eu” e
o “outro”, o que pode colaborar para a formação de uma sociedade menos
preconceituosa, mais igualitária e justa.
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