Percursos
Históricos, Ano VI, vol. maio, série 13/05, 2016.
Memórias de 13 de Maio.
SOARES, Marilda
Em 13 de maio comemora-se o Dia da Abolição
da Escravatura, ou da assinatura da Lei Áurea.
Falar desse tema sempre levanta alguns
questionamentos: a data foi ou é importante para ser comemorada? O que foi a
escravidão? Por que ocorreu a Abolição? E tantas outras questões vão surgindo,
pois o tema é bastante expressivo e polêmico dentro da história do Brasil.
Em primeiro lugar, é necessário que se diga
que “comemorar” significa manter viva a memória individual ou coletiva. Todo
evento histórico precisa ser lembrado, com uma função didática, para que as
sociedades tenham a oportunidade de refletir sobre o passado e retirar dele
exemplos a serem seguidos ou evitados a todo custo, valorizado os acertos e
nunca repetindo os erros, especialmente no que se refere aos direitos de
cidadania.
Há quem considere o “13 de Maio” uma data sem
motivos para comemorações, pois após a Abolição não houve política voltada à
inserção igualitária dos libertos, de modo que estes permaneceram à margem da
sociedade, lutando pela integração com seus próprios recursos e sofrendo as
mais duras formas de preconceito e exclusão.
Ainda que estes questionamentos sejam
pertinentes e mereçam ser respondidos, esta é uma indagação sobre o período
posterior à Abolição, o que não desqualifica o evento histórico propriamente.
Em segundo lugar, deve-se fazer uma análise
retrospectiva, buscando os elementos e os significados do contexto histórico
para que se possa compreender, nesse caso específico, o processo que resultou
no fim da escravidão.
Para que se tenha uma breve imagem do que
ocorria antes da abolição, é preciso lembrar que desde a Antiguidade as
sociedades ocidentais consideravam justa a propriedade de escravos. Na Idade
Moderna, entre os séculos XV e XVIII, a escravidão foi novamente um instrumento
de produção de riquezas, pela exploração do homem pelo homem: em 1452, o Papa
Nicolau V autorizou a redução dos africanos à condição de escravos para
cristianizá-los; em 1534, as Cartas do Foral, que distribuíam as terras
brasileiras em capitanias hereditárias, permitiam a escravização dos indígenas
e seu uso como parte do pagamento de impostos; em 1559, um Alvará da Coroa
Portuguesa autorizou os colonizadores a escravizar africanos em terras
brasileiras. Enfim, trata-se de um longo e processo que envolve toda a história
da humanidade.
As Ordenações Filipinas, leis portuguesas
vigentes também no Brasil colonial, a partir de 1603 regulamentava a
propriedade de escravos e os tipos de castigo, como o retalhamento com faca, a cauterização
com cera quente, o uso do chicote de couro duro, palmatória, argolas, pelourinho.
Após a Independência
do Brasil, a Constituição do Império, de 1824, manteve o regime escravista, mas
no Art. 179 afirmava que a
lei seria igual para todos e que seriam abolidos os açoites, a tortura,
a marca de ferro quente, e todas as demais penas cruéis. Contudo, o Código Criminal do Império, vigente de 1830 a
1886, considerava justificáveis os castigos “que os pais derem a seus filhos, os senhores a seus escravos e os
mestres a seus discípulos”. Ou seja, os princípios legais eram
contraditórios e o fundamento de igualdade constitucional era apenas formal e
não efetivo.
Desse modo, permaneceram
as formas degradantes de trabalho e punições físicas, com diferentes
instrumentos de tortura, como, por exemplo, o ferro de marcar, ou ferrete, o
ferro quente para marcar a pessoa com as iniciais do dono ou com a letra F, em
caso de captura de fugitivos; a palmatória, ou férula, para punir pequenas faltas
cotidianas; as gargalheiras, para
punir fugas ou furtos; os troncos e algemas suspensas, para imobilizar e
castigar fugitivos; o viramundo, que eram hastes de ferro para imobilizar mãos
e pés; as algemas de pés com bola de
ferro, para castigar e impedir a fuga; a cegonha, uma imobilização pernas
e braços com algemas, madeira e grilhão; as máscaras de flandres, para punir por furto de alimentos,
alcoolismo, ingestão de terra para suicídio ou tentativa de furto na mineração.
E tantos outros
instrumentos de tortura, como o extrator de dentes, de madeira e ferro. Como
disse o grande Gilberto Freyre: se a beleza dos dentes da escrava desagradava a
“sinhá”, esta mandava arrancá-los.
Quando a Abolição foi
declarada, tamanha era a revolta contra a escravidão que quase todos os
pelourinhos foram derrubados, tendo permanecido intactos até hoje apenas os de
Alcântara, no Maranhão, e de Mariana, em Minas Gerais.
Embora Portugal tenha sido o primeiro país
colonialista a abolir a escravidão, em 1761, esta lei abrangia apenas os
domínios portugueses na Europa e na Índia. No Brasil a escravidão permaneceu
como base da economia tanto no período colonial, como no período imperial.
Houve tentativas de eliminação do tráfico de
escravos: a Lei Feijó, de 1831, que considerava ilegal o tráfico de escravos
para o Brasil; o Bill Aberdeen, de 1848, que proibia o tráfico no Atlântico; a Lei
Eusébio de Queirós, de 1850, que mais uma vez proibia o tráfico. Entretanto, permaneciam as práticas do tráfico
legal (entre as províncias) o tráfico ilegal (no Atlântico).
Além disso, pouco ou quase nada se fez pela
abolição da escravatura. Pode-se citar a Lei do Ventre Livre, de 1871, e a do
Sexagenário, de 1885, mas foram meros paliativos para adiar a abolição plena.
Embora muitos insistam em afirmar que a
escravidão já havia praticamente sido abandonada em 1888, os dados estatísticos
mostram que nos últimos anos do período escravista registrava-se, no Brasil,
uma população de aproximadamente 10 milhões de habitantes, com quase 50%
afrodescendentes e um milhão e meio de pessoas vivendo sob o regime escravo.
Um estudo interessantíssimo sobre as
escrituras de compra e venda de escravos em Piracicaba, publicado por José
Flávio Motta na Revista Brasileira de História, aponta que em 1854 havia 1.370
escravos (22% da população); em 1874, 5.627 (26% da
população); em 1886, às vésperas da Abolição, 3.820 pessoas em condição escrava
(11,6% da população).
Segundo os
apontamentos de João Humberto Nassif, por ocasião da libertação dos escravos,
em Piracicaba “os recém-libertos
compareceram em massa à Igreja Nossa Senhora do Rosário, atual Igreja de
São Benedito, para agradecer a grande
conquista alcançada em 13 de maio de 1888”. Para nos aproximarmos do
significado daquele momento, compreendendo-o minimamente, precisamos
dimensionar o que aquelas pessoas estavam sentindo, suas esperanças e sonhos...
Assim, há toda uma
trajetória que merece ser relembrada, para que as gerações futuras não percam
de vista que a abolição foi uma conquista, resultado não meramente da
assinatura da Lei Áurea, mas, sobretudo, da construção de mecanismos para uma
sociedade livre, democrática, igualitária.
Entrevista - Educativa FM - Palavras no Ar, 13maio2016: http://educativafm.com.br/novo/historia-no-educativa-palavras-no-ar/