Patrimônios da Humanidade

Patrimônios da Humanidade

20 agosto 2011

Sobre as origens da educação pública, nacional e estatal. Estados germânicos, séculos XVI-XIX.


Sobre as origens da educação pública, nacional e estatal. Estados germânicos, séculos XVI-XIX.
Percursos Históricos, Ano I, vol. ago., série 20/08, 2011.

SOARES, Marilda

A implantação de sistemas de ensino público data do início do século XVI , como mostra da necessidade de articular questões de ordem política, social e religiosa através da educação.
A Carta aos Prefeitos e Conselheiros de Todas as Cidades da Alemanha, a Propósito das Escolas Cristãs[1], escrita por Matinho Lutero em 1524, apresentou uma solicitação aos governantes das cidades, para que criassem novas escolas e as sustentassem, pois considerava que a estabilidade da nova ordem espiritual – o protestantismo – dependia da capacidade dos fieis compreenderem as Sagradas Escrituras. Do mesmo modo, considerava pecado negligenciar a educação infantil, uma vez que a prosperidade e o bem-estar de uma cidade, segundo ele, de pendem da existência de muitos cidadãos cultos, polidos, inteligentes e honrados, que tenham possibilidades de empregar bem os tesouros materiais.
Em Sobre a Manutenção das Crianças na Escola, sermão de 1530, Lutero enfatizou a ideia de que o estado de direito mantém a estrutura da sociedade, sua equidade e continuidade civil e, para prevalecer, depende da educação do povo[2] e afirma:
A autoridade é responsável por obrigar os súditos a que mandem os filhos à escola (...) está indubitavelmente obrigada a conservar os cargos e empregos para que haja pregadores, jurisconsultos, párocos, escrivães, médicos, professores, pois não podemos prescindir deles. Se a autoridade pode obrigar os súditos que sejam capazes, em tempo de guerra, a manejar o mosquete e a lança (...) com muito mais razão pode e deve obrigar os súditos a mandar os filhos às escolas, porque nas escolas se sustenta mais dura guerra com o temível demônio ...[3].


De acordo com pregação de Martinho Lutero, organizar a instrução e promover o processo educativo eram ações necessárias para a salvação das almas e a formação e manutenção da vida civil, a prosperidade da cidade e a estabilidade social. Assim, eram deveres tanto da Igreja quanto do governo civil e deveriam ter por base o estudo das Escrituras, e como objetivos a paz e o bom governo.
A influência de Lutero, de seus discípulos e adeptos pressionou os governantes, pela primeira vez, a se preocuparem com a implantação de um sistema público de ensino. Contudo, é importante ressaltar que no início do século XVI, e também nos seguintes, outros pensadores mostraram interesse pelos problemas sociais, relacionando-os ao processo educativo. Por exemplo, em Utopia, de 1516, Thomas Morus havia idealizado uma sociedade modelar, isolada das influências corruptoras, em que a manutenção da paz e da justiça aparecem como objetivos realizáveis apenas em uma sociedade educada, esclarecida, e com justa distribuição de riquezas. Na sociedade idealizada por Morus, “cada um aprende um ofício, uma arte, de acordo com sua inclinação (...) e não somente os homens, mas também as mulheres”.[4].
O número de seguidores do protestantismo e sua influência ampliaram-se ao longo do século XVII. Os textos indicam o desenvolvimento da educação pública nos Estados protestantes, a intervenção das autoridades oficiais na instituição da escola primária popular e a acentuação do aspecto religioso no ensino. Paralelamente, surgia uma doutrina pedagógica, didática, cujos precursores foram Wolfgang Ratke e Johann Amos Comenius que representaram os movimentos de secularização e racionalização na educação, embora imbuídos de princípios essencialmente religiosos.
Inspirado pelas idéias religiosas e políticas de Lutero, Ratke redigiu, em 1612, o Memorial, no qual enfatizava a necessidade de intervenção do Estado para reformar o ensino e fundar escolas germânicas. Em Teoria da direção dos regentes das escolas cristãs, reafirmava que cabe aos regentes a tarefa de criar escolas e ordenar a todos os meninos frequentá-las para que aprendam a ler, escrever e contar, além de aprender os preceitos religiosos para a salvação.
Ratke foi o criador da primeira escola experimental moderna, de 1618, a escola de Köthen, que tinha o caráter de escola pública, tendo sido fundada  pelo Príncipe Luís de Anhalt- Köthen. Embora, segundo afirmam os estudioso, o empreendimento tenha malogrado por incapacidade organizadora, representou  a união entre os teóricos da reforma do ensino e o poder público. As idéias de Ratke inspiraram várias Ordenanças da época, como o primeiro Estatuto Escolar, do Ducado de Weimar, de 1619, que acentuava o caráter de obrigatoriedade escolar, estabelecendo que crianças de ambos os sexos deveriam ser levadas para as escolas e lá receberem ensino da leitura e da escrita, bem como do catecismo, das rezas e dos cânticos da fé cristã.
Comenius, considerado o precursor da escola única, influiu também no desenvolvimento da educação, defendendo o ensino público e buscando apoio dos governos para as reformas pedagógicas e sociais. Segundo ele, cultura, política e religião são inseparáveis, de modo que a república cristã deveria fundar escolas para que em todo cidade ou povoação menor houvesse educandário para a juventude.
Segundo Lucília Machado, “o sistema pansófico de Comênio se contrapunha à educação jesuítica, voltada para a formação da elite e expressava as necessidades de generalização e de democratização da escola”[5]. Para ele, os conteúdos escolares deveriam ser unificados, diferenciando-se apenas a forma de ensino. Comenius talvez tenha sido um dos primeiros a afirmar a necessidade de unificação do ensino, ao propor uma reforma educativa geral, com um Colégio Universal, língua internacional, formação enciclopédica e coordenação do ensino por um órgão comum a todos os países.
Segundo Luzuriaga, Comenius estabeleceu um sistema de quatro tipos de escolas de seis anos cada, sendo a primeira a escola materna para a infância, ministrada no lar; a segunda a escola pública comum, a ser criada em cada povoação vila ou aldeia; a terceira a escola latina e ginásio, para a adolescência, a ser criada em cada cidade; e a quarta a academia, destinada à juventude, a ser criada em cada reino ou província maior. Suas idéias foram levadas para a Morávia, Polônia, Hungria, Suécia, Inglaterra e Amsterdã e, foi sob sua influência que no Estatuto de Gota, de 1642, regulamentou-se, pormenorizadamente, a escola pública, com critérios independentes das ordenações eclesiásticas.
Obrigatoriedade escolar e intervenção do Estado foram princípios defendidos por diversas correntes, como por exemplo o movimento pietista, difundido nas terras germânicas, no século XVII[6], e que influenciou a determinação, pelo Estado prussiano de que em todas as aldeias onde existissem escolas, os pais seriam obrigados a enviar seus filhos a elas, sob pena de rigoroso castigo.
Basedow, influenciado pelas ideias de Jean-Jacques Rousseau, em Émile, fundou, em 1774, o Philantropinum, um estabelecimento de ensino para todos os homens, para todas as religiões e nações.
As idéias de Basedow inspiraram a obra de Von Rochow, na qual destaca-se Do caráter nacional pelas escolas públicas, de 1779, onde afirma que “um povo que tivesse um bom caráter nacional, seria um povo feliz, honrado, forte, invencível”. E questiona: “Por que meio se dá a uma nação um bom caráter nacional? Pela criação de boas escolas públicas”.
Foi grande a alcance da escola de Basedow, e maior o do pensamento de Rousseau, que lhe inspirou. Também o racionalismo de Spinoza, Descartes e Wolff, e posteriormente o empirismo de Hume influenciaram outros pensadores cujas obras, fundamentadas pela visão revolucionária da época, versam sobre a moral e o conhecimento humano. Emanuel Kant, por exemplo, afirmava que os deveres da humanidade devem ser cumpridos de acordo com uma lei moral que privilegia o respeito individual e coletivo, e é desse modo que ele concebe o processo educativo.
A influência desse movimento reformista mostra-se no Código Geral Civil, de 1794, no qual o Rei Frederico Guilherme II determinou:
As escolas e universidades são instituições do Estado, que têm por fim a instrução da juventude nos conhecimentos úteis e científicos. Todas as instituições escolares e de educação pública e particulares, estão submetidas à inspeção do Estado e acham-se sujeitas, a qualquer tempo, a seus exames e visitas de inspeção (...) A ninguém pode ser negada admissão na escola pública pela diferença de confissão religiosa (...) As crianças que devem ser educadas pelas leis do Estado, em outra religião que a ensinada na escola pública, não podem ser obrigadas a freqüentar o ensino religioso que esta dá[7].

Nos reinos germânicos do século XIX, as medidas unificadoras para a educação nacional foram defendidas por Fichte nos seus Discursos à Nação Alemã, de 1807-1808, nos quais afirmava que:
Mediante a nova educação queremos formar dos alemães uma comunidade na qual todos os membros particulares estejam movidos e animados por uma mesmo e único interesse. (...)  Portanto, só nos resta levar a nova educação a todos os alemães sem exceção alguma, de tal modo que não seja a educação de uma classe particular, senão da nação como tal, sem exceção de nenhum de seus membros[8].

Como ideólogo da unificação alemã, Fichte defendeu a unificação da escola nacional alemã, com educação pública e a cargo do Estado. Contudo, segundo ele, a escola única formaria o cidadão para a nação alemã, mas diferenciação individual manter-se-ia através das demonstrações de aptidões para os trabalhos mecânicos e aptidões para os estudos, de modo que  após participar dos estudos comuns, os sábios aprofundar-se-iam nos estudos[9].
As idéias de Fichte mais tarde seriam retomadas para legitimar reformas educacionais na Alemanha sob o Terceiro Reich. A partir de 1933, a educação nacionalista na Alemanha orientou-se nas idéias totalitárias de Fichte que pregava a entrega das crianças ao Estado; de Hegel, de que o Estado absoluto representaria o direito e a realização moral; e de Nietzsche, do homem ideal. Formaram-se correntes de pensamento que elaboraram a nova ideologia da educação nacional-socialista. Surgiu o “nacionalismo espiritual”, representado pelo movimento juvenil e fundamentado na valorização da natureza, das tradições e costumes alemães.
A inspiração fazia referência à popularização do ensino, mas, no processo de elaboração, radicalizou-se e desviou-se do sentido original, tornando-se parte de uma ideologia autoritária, orientada para um modelo educacional totalitário.


Bibliografia

GILES, Thomás Ransom. História da Educação. São Paulo: E.P.U., 1987.

LARROYO, Francisco. História geral da Pedagogia. São Paulo: Mestre Jou, s.d.

LUZURIAGA, Lorenzo. História da Educação Pública. Tradução e notas de Luiz Damasco Penna e J. B. Damasco Penna.  São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959 (Atualidades pedagógicas).

MACHADO, Lucília Regina de Souza. Politecnia, escola unitária e trabalho. 2a. ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1991.  (Educação contemporânea).

MANACORDA, Mário Alighiero. História da Educação. Da Antiguidade aos nossos dias. 2ª ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1989, (Educação contemporânea).

NUNES, Ruy Afonso da Costa. História da educação no século XVII. São Paulo: EPU : EDUSP, 1981.

PEREIRA, LUIZ; FORACCHI, Marialice M. Educação e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1987.

ROMÃO, José Eustáquio. Poder local e educação. São Paulo: Cortez, 1992.



[1] Apud LUZURIAGA, Lorenzo. História da Educação Pública. Tradução e notas de Luiz Damasco Penna e J. B. Damasco Penna.  São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959 (Atualidades pedagógicas).
[2] Apud GILES, Thomás Ransom. História da Educação. São Paulo: E.P.U., 1987, p. 34.
[3] Apud LUZURIAGA, L., op. cit., p. 7).
[4] Apud MANACORDA, Mário Alighiero. História da Educação. Da Antiguidade aos nossos dias. 2ª ed. São Paulo: Cortez : Autores Associados, 1989, (Educação contemporânea) p. 216.
[5]MACHADO, Lucília Regina de Souza. Politecnia, escola unitária e trabalho. 2a. ed. São Paulo: Cortez : Autores Associados, 1991.  (Educação contemporânea), p. 46-7.
[6]Movimento religioso e cultural surgido nas terras germânicas no século XVII. De acordo com T. R. Giles, “Em termos culturais, é um movimento de protesto e reação contra a dominação francesa sobre a cultura germânica e, de modo especial, contra as influências do ceticismo francês sobre o pensamento religioso (...) O pietismo desconfia profundamente daquelas igrejas que, já acomodadas com influências seculares, perderam o zelo que inspirava Lutero. O mesmo destino aguarda as escolas. Para os pietistas, o sistema educativo, reflexo da religião oficial em vigor em terras germânicas, é imoral, ritualístico e sobrecarregado pelo intelectualismo. Portando, devia ser abandonado”. GILES, T. R., op. cit., p. 167-168.
[7]Apud LUZURIAGA, L., op. cit.,p. 30.
[8] Apud MACHADO, L. op. cit., p. 48.
[9] As diferenças entre as concepções de escola unitária presentes nas teorias de Comenius e Fichte foram apontadas por Lucília Machado. Segundo a autora, “Fichte, ao contrário de Comênio, que propugnava por um sistema de ensino cosmopolita, posicionou-se como homem de seu tempo, por uma organização nacional, destinada a atender a todas as camadas sociais, indistintamente, a cargo do Estado, única força , segundo ele, a garantir tais pressupostos”. MACHADO, L. op. cit., p. 49.

16 agosto 2011

Sobre as origens da educação pública, nacional e estatal. França, séculos XVIII-XIX.


Sobre as origens da educação pública, nacional e estatal. França, séculos XVIII-XIX.
Percursos Históricos, Ano I, vol. ago., série 16/08, 2011.
SOARES, Marilda

Na França, desde a época moderna, houve movimentos em prol da educação pública, representados primeiramente pelos enciclopedistas.
Até 1762 o modelo educacional vinha sendo determinado principalmente pelas congregações religiosas, mas a supressão da Companhia de Jesus motivou a criação de um novo tipo de educação. Ao mesmo tempo, as publicações de O Contrato Social e Emílio, de 1762, de Jean-Jacques Rousseau, contribuíam para a mudança de concepção quanto à atuação do Estado sobre a educação.
Em O Contrato Social, questionando o governo e suas funções, Rousseau propõe:
Que é, portanto, o governo? Um corpo intermediário, estabelecido entre os vassalos e o soberano, para possibilitar a recíproca correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil como política (ROUSSEAU, 1978, p. 65)

E sobre a educação, afirma:
. [...] é fácil ver que entre as diferenças que distinguem os homens, inúmeras delas passam por naturais e são, no entanto, unicamente obras do hábito e dos diversos gêneros de vida, adotados pelo homem em sociedade [...]. O mesmo acontece com as forças do espírito; e a educação não apenas cria a diferença entre espíritos cultivados e os que não são, como aumenta a existente entre os primeiros em proporção de cultura [...] (ROUSSEAU, 1978, p. 172)
Em Emilio, assegura:
Nascemos fracos, precisamos de forças, nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer, e de que precisamos adultos, é-nos dado pela educação (ROUSSEAU, 1995, p. 10).

Em 1763, Luis-René de Caradeuc de La Chalotais, ministro da Bretanha, publicou Essai d'éducation nationale, criticando a educação jesuítica e propondo uma educação pública nacional ao afirmar que ao Estado pertence o direito inalienável de instruir seus membros e
[...] o bem público, a honra da nação, exige que se substitua o ensino religioso por uma educação civil, que se prepare cada geração para desempenhar com êxito as diferentes funções do Estado” (apud LUZURIAGA, 1959, p.33).

Mas La Chalotais não cogitava sobre a educação igualitária, e sim sobre a educação útil ao Estado. Segundo ele, o bem da sociedade requer que os conhecimentos do povo estejam restritos às suas ocupações. Pensava, contudo, na separação entre as funções educativas da Igreja e do Estado, reiterando que à Igreja compete o ensino das leis divinas e ao Estado o da moral. O ensino laico e a educação moral viriam a ser temas polêmicos e debatidos por diversos teóricos e educadores dos séculos XIX e XX.
No final do século XVIII, no período revolucionário, consolidam-se as discussões em torno da implantação da educação pública nacional, cuja realização dar-se-ia ao longo do século XIX. Ao objetivar formar o cidadão, a organização da educação pública passou a enfatizar o ensino cívico, assumindo um caráter popular com prioridade para o ensino elementar. Robespierre, Danton, Mirabeau, e outros expoentes da Revolução, ocuparam-se da reforma educacional com interesse.
Durante a fase da Assembléia Constituinte, Mirabeau, defensor da educação pública, elaborou discursos sobre o tema defendendo o princípio da liberdade de ensino para os mestres. Em seu plano de educação nacional, as escolas primárias constituiriam o ensino de primeiro grau; o liceu nacional, o segundo grau; e a Academia Nacional, o terceiro. Mas Mirabeau não pregava o laicismo ou a neutralidade religiosa, nem o ensino primário gratuito ou obrigatório. Afirmava que o dever do legislador era apenas de proteger o progresso da educação sem interferir nas questões do ensino. Segundo ele, se o poder público dirigisse e inspecionasse as escolas públicas, a educação e o ensino estariam subordinados às suas opiniões ou, antes, à de seus ministros, as quais nem sempre estão coerentes com os interesses do povo.
Após vários projetos e debates, um artigo da Constituição de 1791 proclamou a educação como assunto nacional e abarcou três dos caracteres fundamentais da educação pública contemporânea: a universalidade, a gratuidade e a criação de estabelecimentos pelo poder público.
No ano seguinte, durante a Assembléia Legislativa, surgiu o projeto de Condorcet - como o de Talleyrand, nunca discutido -, considerado uma obra clássica da educação pública e da pedagogia política. Condorcet, um dos protagonistas da Revolução Francesa, era cientista, filósofo, político e secretário da Assembléia Legislativa, onde expôs, em 21 de abril de 1792, seu projeto educacional intitulado Rapport sur l'instruction publique, aprovado em agosto do mesmo ano. O projeto de decreto apresentava-se sob a forma de um relatório sobre a natureza e os fins da instrução pública, a instrução comum para crianças e adultos, a instrução profissional e científica. Nele, Condorcet expressa sua convicção no infinito progresso do homem ao longo dos estágios históricos, julgando ser esta a forma de estirpar a desigualdade entre as classes e as nações. Ele defende a instrução comum e laica para todos sob os cuidados do Estado, condensando toda a ideologia pedagógica da Revolução Francesa nos princípios de universalidade, igualdade e oficialização da educação, sem admitir a obrigatoriedade, visto que, naqueles tempos, esta era considerada contrária aos princípios liberais. Mas, prega a gratuidade do ensino de todos os graus e o estabelecimento de um sistema de bolsas de estudo para os alunos mais destacados; introduz, ainda, o princípio do laicismo pedagógico.
Segundo Condorcet, era necessário
Oferecer a todos os indivíduos da espécie humana os meios de prover a suas necessidades, assegurar seu bem-estar, conhecer e exercer seus direitos, compreender e cumprir seus deveres; assegurar a cada um a faculdade de aperfeiçoar seu engenho, de capacitar-se para as funções sociais a que há de ser chamado, desenvolver toda a extensão das aptidões, recebidas da natureza, e estabelecer, desse modo, entre os cidadãos, uma igualdade de fato e dar realidade à igualdade política reconhecida pela lei, tal deve ser a primeira finalidade de uma instrução nacional que, desse ponto de vista, constitui para o poder público um dever de justiça. Não se pode admitir na instrução pública um ensino que destrua a igualdade de vantagens sociais [...] e conceda vantagens a dogmas particulares contrários à liberdade de opiniões (apud LUZURIAGA, 1959, p. 56).
A Constituição não pode permitir na instrução pública um ensinamento que, afastando os filhos de uma parte dos cidadãos, destruiria a igualdade das vantagens sociais ... É [...] rigorosamente necessário separar da moral os princípios de qualquer religião particular e não admitir na instrução pública o ensinamento de algum culto religioso. Este deve ser ensinado nos templos pelos seus ministros (apud MANACORDA, 1989, p. 251)

Em 1802, já no período napoleônico, os governos foram autorizados a cobrar contribuições para a manutenção do ensino, o que significava a supressão das subvenções do Estado; a questão da obrigatoriedade não foi tocada; os mestres deveriam, a partir de então, ser escolhidos pelos conselhos municipais; a fiscalização seria realizada pelos subprefeitos administrativos e os municípios próximos poderiam, conjuntamente, fundar escolas. Na lei de maio, de 1806, e no seu complemento, em 1808, o governo francês determinou a subordinação absoluta da educação às idéias políticas governamentais e sua divulgação entre o povo. Segundo afirmava Napoleão, 
Não haverá Estado político firme se não houver corpo docente com princípios firmes. Enquanto não se aprender na infância se deve ser republicano ou monarquista, católico ou religioso, etc., o Estado não constituirá uma Nação; apoiar-se-á em bases incertas e vagas; estará constantemente exposto a desordens e mudanças (apud LUZURIAGA, 1959, p. 59).

Assim, foi criada a Universidade Imperial, que compreendia a totalidade da instrução pública na França, desde as escolas primárias até as superiores, dando à educação um caráter de monopólio estatal, o que foi acentuado pela lei de 1808, segundo a qual nenhuma escola ou estabelecimento de instrução poderia estabelecer-se ou funcionar fora ou paralelamente à Universidade Imperial.
O modelo de instrução pública nacional imposto no período napoleônico foi autoritário, centralizador e monopolizador, precedendo a um modelo geralmente adotado nos regimes totalitários do século XX e em outros que, embora não tenham “dado o salto” para o totalitarismo, cortejaram os modelos organizacionais nazi-fascistas.
Após a Lei de 1833, o partido católico francês deu início a uma campanha pela liberdade de ensino com o intuito de favorecer ao programa de ensino do secundário ministrado pelas ordens religiosas. Mostrava-se a percepção de que a reforma (e suas leis complementares), inicialmente apoiada pela Igreja, visava a hegemonia do Estado sobre a educação.



Em agosto de 1851, após a eleição de Luís Napoleão, um Regulamento modificou a estrutura da educação francesa, conferindo às congregações religiosas as prerrogativas e garantias antes concedidas aos mestres públicos; a gratuidade do ensino foi suprimida; a educação religiosa considerada o principal dever do mestre. A chamada Lei Falloux representou um retrocesso para a educação pública da França e a vitória dos grupos articulados contra o laicismo pedagógico e temerosos do avanço do socialismo.


Em 1864 foi realizado um inquérito sobre a educação, onde se revelou a ineficiência de sua estrutura e métodos, o que teria estimulado o Imperador a pedir a implantação do ensino gratuito e obrigatório e a afirmar ser um dever do Estado assegurar à criança os meios para instruir-se para que, no futuro, pudesse tornar-se útil para a sociedade. Em conseqüência, em 1867 foi apresentado por Victor Duruy um projeto de lei propondo inúmeras reformas para a instrução que, apesar das palavras do Imperador, foi recusado.
Após a proclamação da Terceira República, o governo francês buscou estabelecer um novo projeto político e social, no qual a educação aparecia como instrumento de reconstrução da sociedade. Durante a década de 1870 iniciou-se o processo de criação de escolas públicas visando atingir o número suficiente de vagas para a população infantil e melhorar a situação profissional dos professores.
No final da década, e na seguinte, Jules Ferry, ministro da Instrução Pública, criou o Conselho Superior de Instrução Pública e os Conselhos acadêmicos, implantou o ensino secundário feminino e fundou a Escola Normal de Sèvres para os professores secundários; suprimiu as contribuições escolares na escola pública, estabeleceu a obrigatoriedade e a laicidade do ensino primário; determinou a fiscalização escolas nos municípios; substituiu o ensino religioso pelas aulas de instrução moral e cívica, determinando o ensino religioso facultativo nas escolas particulares. Segundo Jules Ferry, 
Cumpre fazer desaparecer a última e mais temível das desigualdades que vem do nascimento, a desigualdade da educação. Porque há uma distinção fundamental, entre os que receberam uma educação e os que não receberam. Eu vos desafio a fazer jamais dessas duas classes uma nação igualitária, uma nação animada da confraternização de idéias que é a força das verdadeiras democracias, se entre essas duas classes não houve a primeira aproximação, a primeira fusão, resultante da mistura de ricos e pobres nos bancos de uma escola (apud LUZURIAGA, 1959, p. 70).

Em 1886 uma lei decidiu que nas escolas públicas, de toda ordem, somente leigos poderiam ensinar; em 1904, uma nova lei determinou a proibição do ensino às congregações religiosas, ampliando, assim, as medidas em prol da laicização do ensino.
Somente no século XX se consolidaria na França o princípio de educação pública, estatal e nacional idealizado desde o século XVIII.

Bibliografia.

GILES, Thomás Ransom. História da Educação. São Paulo: E.P.U., 1987.
LARROYO, Francisco. História geral da Pedagogia. São Paulo: Mestre Jou, s.d.
LUZURIAGA, Lorenzo. História da Educação Pública. Tradução e notas de Luiz Damasco Penna e J. B. Damasco Penna.  São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959 (Atualidades pedagógicas).
MACHADO, Lucília Regina de Souza. Politecnia, escola unitária e trabalho. 2a. ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1991.  (Educação contemporânea).
MANACORDA, Mário Alighiero. História da Educação. Da Antiguidade aos nossos dias. 2ª ed. São Paulo: Cortez : Autores Associados, 1989, (Educação contemporânea).
NUNES, Ruy Afonso da Costa. História da educação no século XVII. São Paulo: EPU: EDUSP, 1981.
PEREIRA, LUIZ; FORACCHI, Marialice M. Educação e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1987.


ROUSSEAU, Jean-Jacques.O Contrato Social e outros escritos. São Paulo: Cultrix, 1978.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio  ou Da Educação. Rio de Janeiro: Bertrand, 1995.

13 agosto 2011

Sobre as origens da educação pública, nacional e estatal. Estados Unidos, séculos XVII-XIX.


Sobre as origens da educação pública, nacional e estatal. Estados Unidos, séculos XVII-XIX.
Percursos Históricos, Ano I, vol. ago., série 13/08, 2011.


SOARES, Marilda

                        
No território norte-americano, a primeira legislação escolar, adotada em 1642, fundamentada nos princípios calvinistas, determinou que na colônia de Massachusetts seriam escolhidos conselheiros nas diversas povoações para que aplicassem multas aos pais e patrões que descuidassem do assunto, pedindo contas sobre a capacidade das crianças para, além de ler e escrever, compreender os princípios religiosos e legais do país. Assim, ficava estabelecido, pela primeira vez na América, a obrigatoriedade de educar.
Tal medida representava uma inovação tanto pelo fato de que se tratava de lei imposta pelos representantes do povo, quanto porque não se limitava a estabelecer a necessidade da educação religiosa, mas também do conhecimento das leis do país, como determinaria, mais tarde, o ensino cívico.
Em 1647, uma nova lei de Massachusetts ordenou que em toda povoação onde houvesse mais de 50 vizinhos, um deles fosse nomeado para ensinar as crianças a ler e escrever, com salário pago pelos pais, patrões ou outros membros da comunidade; onde houvesse 10 vizinhos ou mais, deveria ser criada uma escola de gramática para habilitar os jovens instruídos para o ingresso na Universidade.
Durante o século XVII, essas leis estenderam-se às outras colônias inglesas da América do Norte, constituindo-se nos princípios básicos da legislação educacional norte-americana que determinava:
1º A educação universal é essencial ao bem-estar do Estado. 2º A obrigação de prover a essa educação compete preliminarmente aos pais. 3º O Estado tem direito de fazer cumprir essa obrigação. 4º O Estado pode usar, para a educação, fundos públicos, obtidos por impostos gerais. 5º A educação superior à elementar pode ser dada pelo Estado. Devem ser oferecidas oportunidades, com fundos públicos para jovens que desejem freqüentar a Universidade (apud LUZURIAGA, 1959, p. 21).

Nos Estados Unidos, a Constituição federal de 1787 determinou que a educação estava a cargo dos Estados, e mesmo antes da Independência os governos locais se mostravam dispostos a aceitar a teoria de que as escolas devem estar sob o controle oficial. Em 1796, sob a influência das idéias ilustradas de difusão do conhecimento entre o povo e do peso da opinião popular para o governo, George Washington reiterou a posição de promover a difusão do ensino e a escola pública, afirmando ser a educação fundamental para que a opinião pública se tornasse “ilustrada”.
Dos treze Estados que formaram a nação, sete estabeleceram em suas constituições o princípio da educação pública, como foi o caso de Massachusetts, que manifestou a idéia de educação como ensino técnico, moral e cívico, antecipando um discurso que se manteria atual por mais dois séculos:
O saber e o conhecimento, tanto como a virtude, definidos universalmente no conjunto do povo, são necessários para a conservação de seus direitos e liberdades; e como estes dependem de estender as oportunidades e vantagens da educação às diversas partes do país e entre as diferentes classes do povo, será dever das legislaturas e dos magistrados em todos os períodos futuros desta Comunidade, fomentar os interesses da literatura e das ciências, e todos os seus seminários, especialmente o Colégio de Cambridge, as escolas públicas e as escolas de gramática das cidades; estimular as sociedades particulares e as instituições públicas com recompensas e imunidades, para a promoção da agricultura, artes, ciências, comércio, ofícios, manufaturas e uma história natural do país; favorecer e inculcar os princípios de humanidade e benevolência geral, a caridade pública e particular, o trabalho e a frugalidade, a honradez e a pontualidade nos trabalhos; a  sinceridade, bons modos e todos os afetos sociais e sentimentos generosos entre o povo (apud LUZURIAGA, 1959, p. 54-5).

A Federação iniciou uma política para auxiliar os Estados no estabelecimento de sistemas escolares, com doações de terras e outros meios[1].
Quanto à educação pública nacional nos Estados Unidos, passou por avanços e retrocessos após a Guerra de Independência, devido à depressão econômica e às crises políticas que se seguiram. Somente no final do século XIX ficou estabelecido um sistema de educação nacional, com a conquista progressiva de financiamento do ensino pelos poderes públicos, gratuidade total em todos os níveis, inspeção por autoridades oficiais e criação de Universidades públicas mantidas pelo Estado. Tratou-se de longo processo e do empreendimento de uma luta encabeçada por políticos liberais e trabalhadores, contra conservadores e eclesiásticos[2].
Naquele período, nos Estados Unidos da América, a concepção de democratização educacional expressou-se no ideal de igualdade de oportunidades educacionais para todos, defendido por pensadores como John Dewey e Willian Kilpatrick, que influenciaram as principais reformas educacionais do século, não apenas nos Estados Unidos, como no resto do mundo ocidental, incluindo, inclusive, as reformas realizadas na Rússia por Lunatcharski e Krupskaya após 1917.
Em Credo pedagógico, de 1897, Dewey expôs o princípio de suas teorias ao afirmar que toda a educação deve ser socializada, para abranger a tríplice unidade moral da escola: fim social, força social e interesse social. A escola, segundo ele, constitui-se no instrumento essencial e mais eficaz para o progresso e para a justa vida social.
E, 35 anos depois, em uma conferência, reiterou seu ideal educativo ao observar: “(...) tentara-se simplesmente ministrar para todos uma instrução que no passado era destinada aos poucos, até que se verificou uma mudança revolucionária determinada em grande parte pelo fator econômico da vida”. De uma visão bastante idealizada da educação, no final do século XIX, Dewey passa a expressar uma preocupação intensa com essa relação entre educação, produção e sociedade que, enfim, constituem-se no eixo central da sua teoria (GILES, 1987, p. 263).
O pensamento democrático presente na organização da educação norte-americana desde o início da formação do Estado nacional pode ser observado através das propostas da Comissão de política da Nacional Education Association, sociedade pedagógica que, em 1940, reiterou os discursos anteriores sobre o tema ao afirmar:
A educação pode ajudar a aclarar a natureza dos objetivos da democracia. Pode refletir o sonho americano de uma nação com liberdade, justiça e oportunidade para todos, no amplo curso da história, desde a época dos fundadores da nacionalidade. Pode fomentar a compreensão das liberdades civis e das instituições políticas, mediante as quais encontra expressão o ideal democrático. Pode projetar a luz da indagação livre e construtiva naqueles problemas econômicos e sociais que, deixados sem solução, ameaçam desintegrar a democracia. Pode confirmar aquela fé no valor e perfectibilidade do indivíduo, que é o princípio básico da democracia. Pode oferecer oportunidades para viver a democracia na escola e no lar, na oficina e na praça pública. As instruções, os ritos e os apelos à emoção não bastam. O conhecimento, a reflexão e o mestre dos mestres, a experiência, são essenciais para a defesa moral (apud LUZURIAGA, 1959, p. 135).

Essa tendência democrática mostrou-se não apenas nos discursos sobre a educação pública, mas, sobretudo, nas medidas efetivamente tomadas, como a adoção de preceitos legislativos quanto à organização do ensino nos diferentes níveis; na freqüência obrigatória; na ampliação constante dos índices de escolaridade; na democratização administrativa, com intervenção popular direta e participação das comunidades locais, eleição dos diretores escolares e das autoridades da educação pública; na co-educação dos sexos em todas as instituições educacionais públicas. Ou seja, instituiu-se um sistema escolar público, gratuito, não sectário e aberto a todos.
Ao longo do século XX, verificou-se grande ampliação das oportunidades de acesso à educação, devido ao crescimento populacional, às demandas econômicas da sociedade capitalista industrial, às pressões sociais e à maior interferência dos poderes públicos na organização e no financiamento da educação pública.  Após séculos de debates e reformas educacionais, o direito de acesso á educação é considerado hoje um bem comum em todo o mundo ocidental.
A atuação do Estado nacional na organização do ensino, ou seja, a criação de um modelo educacional orientado, dirigido e financiado pelo poder público teve início, na Idade Moderna, sob a inspiração das transformações  culturais da Europa renascentista e protestante. Os processos de secularização do Estado e de organização da educação para os fins por ele determinados avançaram, culminando, séculos mais tarde, com o surgimento da educação pública estatal, na época do Iluminismo e do despotismo esclarecido. Por aqueles tempos, o objetivo do ensino compreendia a formação dos súditos e tinha um caráter disciplinar e intelectual, destinado aos militares e funcionários públicos. Mas a democratização dos sistemas educacionais e métodos de ensino dependem da consolidação de um projeto lentamente estruturado e ainda figuram como meta dos educadores do século XXI.


Bibliografia

GILES, Thomás Ransom. História da Educação. São Paulo: E.P.U., 1987.

LARROYO, Francisco. História geral da Pedagogia. São Paulo: Mestre Jou, s.d.

LUZURIAGA, Lorenzo. História da Educação Pública. Tradução e notas de Luiz Damasco Penna e J. B. Damasco Penna.  São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959 (Atualidades pedagógicas).

MACHADO, Lucília Regina de Souza. Politecnia, escola unitária e trabalho. 2ª. ed. São Paulo: Cortez : Autores Associados, 1991.  (Educação contemporânea).

MANACORDA, Mário Aligliero. História da Educação. Da Antiguidade aos nossos dias. 2ª ed. São Paulo: Cortez : Autores Associados, 1989, (Educação contemporânea).

NUNES, Ruy Afonso da Costa . História da educação no século XVII. São Paulo: EPU: EDUSP, 1981.

PEREIRA , LUIZ; FORACCHI, Marialice M. Educação e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1987.

ROMÃO, José Eustáquio. Poder local e educação. São Paulo: Cortez, 1992.




[1]Segundo T. R. Giles, nos Estados Unidos, “o problema com que os cidadãos da nova república se defrontam é o problema da identidade nacional. Apesar do termo 'Estados Unidos', falta uma base de união real, pois não basta ser livre da tutela política da Grã-Bretanha para formar uma unidade política. (...) Desde a época da Conveção reconhece-se a necessidade de um envolvimento nacional no processo educativo. Um dos signatários da Constituição, Benjamin Rush (1745-1813), considera a educação como uma pedra de toque da nova sociedade e, em 1795, apresenta um plano para um sistema de educação nacional. A finalidade desse projeto resume-se na afirmação de que o processo educativo deve tornar as crianças 'máquinas republicanas”.  GILES, T. R., p. 212-213.
[2]Em uma reflexão sobre a educação nos Estados Unidos, nesse período que nos ocupa, Giles afirmou que “apesar do aparente liberalismo dos projetos de educação, entende-se que o processo está aberto tão-somente aos filhos da classe média, ou seja, da burguesia. De fato, a estrutura social favorece os latifundiários oligárquicos do sul e os comercianetes e industriais do norte. No caso, o republicanismo significa o governo oligárquico. O século XIX é marcado pela luta, por parte dos deserdados, para conseguirem os mesmos direitos em termos de igualdade, objetivo que ainda permanece como ideal a ser realizado”. GILES, T. R., op. cit., p. 217.

09 agosto 2011

O Estado Novo e os projetos de crescimento econômico e expansão do sistema de ensino.


O Estado Novo e os projetos de crescimento econômico e expansão do sistema de ensino.
Percursos Históricos, Ano I, vol. ago., série 09/08, 2011.

SOARES, Marilda
Nas décadas de 1930 e 1940, além das mudanças políticas que apontavam para o acelerado processo de centralização, o crescimento populacional do período anterior e a expansão da indústria determinaram um quadro de reorganização econômica.
De acordo com os dados do antigo Departamento Estadual de Estatística, entre os anos de 1938 e 1942, aproximadamente 15 mil novas fábricas foram instaladas, tendo-se constatado a existência de mais de 100 unidades industriais em cada Estado da federação. A produção atingiu 8 bilhões de Cruzeiros em 1937; 12 bilhões em 1940 e mais de 27 bilhões em 1943, cifras que demonstram a ampliação do parque industrial. Esse crescimento gerou projetos de remodelação da indústria nacional, com investimentos vultosos (siderurgia em Volta Redonda, fábrica de motores em Caxias, exploração de minérios no Vale do Rio Doce, produção de aviões em Lagoa santa, e outros) e o estabelecimento de um plano para o setor de comunicação e transportes.
Segundo o Ministério das Relações Exteriores, na metade da década de 1940, a maior parte dos produtos antes importados foi produzida internamente, e a exportação de tecidos superou um bilhão de Cruzeiros, valor inferior apenas ao da exportação do café. Quanto ao valor global das exportações, os manufaturados significaram, em 1943, 19,2% do total, percentual significativo em um país que tradicionalmente atuava no comércio internacional como produtor agrícola.
Com o objetivo de conquistar novos mercados consumidores, o Estado criou o Instituto Nacional de Tecnologia, um órgão de pesquisa destinado a experimentar matérias-primas e produtos fabricados,  para servir de laboratório para as empresas químicas, metalúrgicas, de fermentação, de combustíveis, têxteis e outras, e controlar tecnicamente os processos e métodos produtivos.
Os anos de 1937 a 1947 foram propícios ao crescimento da economia nacional, com o desenvolvimento do processo industrial e modernizador. A Segunda Guerra revigorou a economia brasileira, ampliando o volume de exportações e, em consequência, de capital disponível para novos investimentos.
De acordo com números apresentados pelo Banco do Brasil, publicados por Heitor Ferreira Lima (1973), o crescimento das exportações foi significativo para a balança comercial, passando de um saldo negativo de CR$3.000,00, em 1940, para um saldo positivo de CR$2.730.000,00, em 1944:

Brasil. Exportações em milhares de Cruzeiros, 1940-1944.
Anos
Importação
Exportação
Saldo
1940
4.964
4.461
- 3
1941
5.514
6.726
+ 1.212
1942
4.693
7.500
+ 2.857
1943
6.092
8.729
+ 2.567
1944
7.997
10.727
+ 2.730

Assim, devido às possibilidades do mercado internacional, aos investimentos internos e ao incentivo governamental, ganhava espaço a certeza de que a indústria constituiria a nova estrutura produtiva. A industrialização emergia como um fator dinâmico da economia e expandiam-se os aglomerados urbanos e as camadas médias, crescendo a demanda de formação de quadros profissionais e de ampliação do sistema educacional (CANABRAVA, 1985).
Por outro lado, como consequência da prosperidade dos setores secundário e terciário no sul do País, as regiões cuja produção estava atrelada ao setor agrário sofriam com a crise causada pela perda de mão-de-obra e pelo favorecimento da política nacional à produção industrial. Tais mudanças implicavam em uma rearticulação global da ordem econômico-social, com reflexos na política e na sociedade.
As condições sociais, econômicas e políticas de uma determinada sociedade são refletidas nos seus sistemas educacionais e movimentos educativos em geral. Especialmente nos períodos de mudança econômica, política ou social, o sistema educacional em funcionamento é questionado por não atender às novas necessidades criadas. Exemplo disso foram as discussões acerca da educação brasileira: no início do período republicano as reivindicações giraram em torno da difusão do ensino elementar comum; nos anos vinte, o tema central foi a  reformulação dos sistemas já existentes; e, nos anos trinta e quarenta, tratou-se da promoção do ensino técnico-profissional (PAIVA, 1987).
De acordo com Otaíza Romanelli, um dos fatores associados à expansão do ensino, a partir de 1930, foi a ampliação da demanda social de educação, como sido resultado do crescimento demográfico (demanda potencial) e da intensificação do processo de industrialização (demanda real). A autora ressalta que  o setor educacional apresentava resultados deficientes do ponto de vista quantitativo (falta de escolas, baixo rendimento do sistema escolar e discriminação social) e do ponto de vista estrutural (defasagem entre o tipo de escola criada pelo processo de expansão do ensino e as necessidades econômicas). Assim, manteve-se, no período, o desequilíbrio entre o que era oferecido pela escola e as necessidades sociais de qualificação para mundo do trabalho (ROMANELLI, 1980).
A dificuldade de implantação de um sistema de educação que atendesse às demandas da economia nacional era consequência também do descompasso entre os modelos de sociedade e política presentes antes da implantação da República.
Desde o final do século XIX, crescimento da economia exerceu influência sobre trabalhadores nacionais e estrangeiros. O deslocamento de grandes contingentes das zonas rurais para os centros urbanos desequilibrou a distribuição populacional e reforçou a polarização dos núcleos urbanos já existentes. Segundo os recenseamentos oficiais, entre 1900 e 1950, a taxa média anual de  crescimento populacional do país foi de 2,2%, passando de cerca de 18 milhões para aproximadamente 52 milhões de habitantes.
A expansão urbano-industrial constituiu-se em um dos fatores determinantes das mudanças educacionais, pois o crescimento econômico e populacional exigiu a concepção de projetos para a ampliação do acesso à educação, bem como o desenvolvimento do "ensino utilitário" para qualificar rapidamente a mão-de-obra segundo as necessidades do mercado de trabalho. Mas o crescimento populacional, maior que a capacidade de expansão da rede pública de ensino, tornou as altas taxas de analfabetismo e a demanda educacional problemas de difícil solução.
Nos anos 30 e 40, outro problema ligava-se especificamente à estrutura educacional: o ensino estava organizado de acordo com os padrões estabelecidos pelos primeiros republicanos, mantendo um caráter elitista que excluía as camadas médias e baixas da população, tanto pelo nível de exigência do ensino, quanto pela ausência de condições materiais para a permanência dos alunos na escola.
O aumento da demanda de educação formal foi resultado, dentre outros aspectos, do crescimento populacional, das transformações socioeconômicas e da percepção de que a escola era um importante meio para ascensão na escala social. Assim, a sociedade passou a pressionar os poderes públicos no sentido de expandir a rede de ensino o que implicou na ampliação da interferência do Estado sobre o sistema educacional.
O governo mostrou-se preocupado em ampliar os níveis de escolaridade e conferir à educação um novo papel frente à realidade econômica e social. As mudanças no panorama político exigiram não apenas a reorganização dos quadros administrativos, mas, sobretudo, uma nova postura do poder público frente às questões sociais. Nesse contexto, a expansão do ensino elementar apresentava-se como condição para a posterior ampliação do ensino técnico-profissional.
O processo de modernização da sociedade fez com que o modelo de educação seletiva representasse um obstáculo ao desenvolvimento, pois causava um desequilíbrio entre as necessidades do empresariado e a capacidade da mão-de-obra, de modo que se tornam mais contínuos os movimentos ligados à renovação educacional. As mudanças na estrutura do ensino deram-se segundo a forma como os desequilíbrios entre os sistemas educacional e econômico foram percebidos. Por outro lado, o aumento e a concentração populacional criaram uma demanda social de educação e exerceram pressão sobre a oferta de ensino, obrigando o sistema educacional a expandir-se.
Desse modo, além dos problemas específicos ligados à manutenção da ordem pública em um regime autoritário, a expansão do ensino foi também resultante da conjugação entre demanda social de educação e das necessidades econômicas criadas pelo crescimento da economia capitalista.
Segundo Vanilda Paiva, além das questões ligadas às condições socioeconômicas internas, fatores de ordem externa e outros, vinculados essencialmente à educação, influenciam os movimentos em prol das oportunidades educativas, como o prestígio do governo e os compromissos assumidos em encontros internacionais relativos ao ensino. Outros fatores foram decisivos para a ampliação do ensino elementar no Brasil, como as Guerras Mundiais, que provocaram movimentos de nacionalização do ensino, especialmente em núcleos de colonização estrangeira, causando a expansão da rede pública; e movimentos ligados aos ideais democráticos e socialistas, que impulsionaram a luta pela educação popular.
Segundo ela, o processo de modernização econômica do país, que, na década de 1910 fortaleceu a industrialização e a urbanização, acentuando as possibilidades de expansão do ensino elementar; e no período posterior a 1930 impulsionou o ensino técnico-profissional, considerado elemento essencial ao progresso da Nação. Por outro lado, ressalta que, mesmo estando subordinado a questões de ordem política e econômica, o movimento educativo possui uma dinâmica própria que também influencia no processo de expansão do sistema de ensino, mas que pode levar a medidas estéreis, se não corresponder às condições reais da sociedade à qual se destina.
Ainda de acordo com as observações de Paiva, a educação influi na evolução da sociedade por se um instrumento de formação de mão-de-obra e de cientistas, pesquisadores e tecnólogos, que podem contribuir decisivamente para o crescimento econômico e para a transformação das estruturas sociais. Através dos postulados ideológicos difundidos, dos currículos e conteúdos escolares e dos métodos de ensino, a educação pode ser um instrumento de transformação ou de conservação social. Os movimentos educativos, afirma, não têm, isoladamente, a possibilidade de transformar a sociedade, pois estão ligados à vida política, assim como os sistemas de ensino estão subordinados ao Estado ou às classes dominantes, portanto, qualquer mudança no setor depende das lutas pelo poder, dos embates ideológicos e do nível de desenvolvimento das forças produtivas.
Isso é o que se verificou nos anos 30 e 40, quando as prioridades econômicas e as expectativas da sociedade civil quanto à atuação da sociedade política determinaram a necessidade de uma nova postura do Estado frente às instituições sociais e ao papel da máquina governamental na orientação do ensino.  
Para resolução dos problemas foram adotadas, prioritariamente, medidas de caráter político que visavam diminuir o déficit de vagas escolares e criar oportunidades de acesso das parcelas sociais até então excluídas da educação formal. Tal política, acompanhada de uma crescente intervenção do governo federal, tinha como propósito, sobretudo, tornar a educação um agente reprodutor do perfil ideológico do regime vigente, de modo que o sistema de ensino foi burocratizado e controlado e os sistemas escolares regionais obrigados a organizar e manter instituições de acordo com as diretrizes estabelecidas pela União.
Para manter o regime, o governo buscou o apoio da população urbana, na medida em que o centro de força da cena política localizava-se no espaço urbano e que este, ao mesmo tempo, fornecia os elementos visíveis da modernização econômica da sociedade. Assim, a partir dos anos 30, as camadas médias e o operariado, representando a base de sustentação política, se tornaram o alvo dos discursos que pregavam a redução da distância entre o Poder e as classes sociais.
Os fenômenos de industrialização e urbanização não apenas aumentaram o contingente populacional, como deram origem a novas aspirações e reivindicações sociais, visto que o desenvolvimento econômico não se fazia acompanhar pela criação de infraestrutura urbana para as diferentes camadas sociais integradas no processo produtivo (SPOSITO, 1985).
Para solucionar problemas sociais ligados a fatores econômicos, demográficos, políticos e ideológicos, as principais mudanças quanto aos aspectos quantitativos do ensino atingissem especialmente as parcelas urbanas da sociedade.
Desse modo, o perfil da instrução pública delineou-se também sob a influência das diretrizes políticas e econômicas nacionais. As medidas políticas referentes à reestruturação do ensino público tiveram o propósito de torná-lo um dos agentes da construção do "Estado verdadeiramente nacional", o que representava, naquele momento, a expressão da ordem social e do progresso econômico.

  
Bibliografia.

ALVES, Isaías. Educação e brasilidade: ideias forças no Estado Novo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1939.
AMARAL, Azevedo. O Estado autoritário e a realidade nacional. Brasília: Ed.UNB, 1981.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Pátria, civilização e Trabalho. O ensino de História nas escolas paulistas (1917-1939). São Paulo: Loyola, 1990.
Canabrava, Alice Piffer. História da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, 1946-1981. São Paulo: José Augusto Gugliardi, 1984.
IBGE. A educação no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/Conselho Nacional de Estatística, 1949.
LIMA, Heitor Ferreira. História político-econômica e industrial do Brasil, São Paulo: Nacional, 1973.
MACHADO, Lucília R. de Souza. Politecnia, escola unitária e trabalho. 2a. ed. São Paulo: Cortez : Autores Associados, 1991 (Educação contemporânea).
MAZZEO, Antonio Carlos. Burguesia e capitalismo no Brasil. São Paulo: Ática, 1995.
PAIVA, Vanilda Pereira. Educação popular e educação de adultos. São Paulo: Loyola, 1987 (Temas brasileiros, II).
ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil: 1930/1973. Petrópolis: Vozes, 1980.
SOARES, Marilda Aparecida. “Para promover a grandeza da Nação”: O Estado Novo e o projeto para a Educação nacional. Tese de Doutorado. São Paulo: FFLCH/USP, 2002.
SPOSITO, Maria Encarnação. Capitalismo e urbanização. São Paulo: Contexto, 1985.
WEREBE, Maria José. 30 anos depois. Grandezas e misérias do ensino no Brasil. São Paulo: Ática, 1994.
XAVIER, Elizabete. Capitalismo e Escola no Brasil. A constituição do Liberalismo em ideologia educacional e as reformas do ensino (1931-1961). São Paulo: Papirus, 1990.