Sobre as origens da educação pública, nacional e estatal. Estados germânicos, séculos XVI-XIX.
Percursos Históricos, Ano I, vol. ago., série 20/08, 2011.
SOARES, Marilda
A implantação de sistemas de ensino público data do início do século XVI , como mostra da necessidade de articular questões de ordem política, social e religiosa através da educação.
A Carta aos Prefeitos e Conselheiros de Todas as Cidades da Alemanha, a Propósito das Escolas Cristãs[1], escrita por Matinho Lutero em 1524, apresentou uma solicitação aos governantes das cidades, para que criassem novas escolas e as sustentassem, pois considerava que a estabilidade da nova ordem espiritual – o protestantismo – dependia da capacidade dos fieis compreenderem as Sagradas Escrituras. Do mesmo modo, considerava pecado negligenciar a educação infantil, uma vez que a prosperidade e o bem-estar de uma cidade, segundo ele, de pendem da existência de muitos cidadãos cultos, polidos, inteligentes e honrados, que tenham possibilidades de empregar bem os tesouros materiais.
Em Sobre a Manutenção das Crianças na Escola, sermão de 1530, Lutero enfatizou a ideia de que o estado de direito mantém a estrutura da sociedade, sua equidade e continuidade civil e, para prevalecer, depende da educação do povo[2] e afirma:
A autoridade é responsável por obrigar os súditos a que mandem os filhos à escola (...) está indubitavelmente obrigada a conservar os cargos e empregos para que haja pregadores, jurisconsultos, párocos, escrivães, médicos, professores, pois não podemos prescindir deles. Se a autoridade pode obrigar os súditos que sejam capazes, em tempo de guerra, a manejar o mosquete e a lança (...) com muito mais razão pode e deve obrigar os súditos a mandar os filhos às escolas, porque nas escolas se sustenta mais dura guerra com o temível demônio ...[3].
De acordo com pregação de Martinho Lutero, organizar a instrução e promover o processo educativo eram ações necessárias para a salvação das almas e a formação e manutenção da vida civil, a prosperidade da cidade e a estabilidade social. Assim, eram deveres tanto da Igreja quanto do governo civil e deveriam ter por base o estudo das Escrituras, e como objetivos a paz e o bom governo.
A influência de Lutero, de seus discípulos e adeptos pressionou os governantes, pela primeira vez, a se preocuparem com a implantação de um sistema público de ensino. Contudo, é importante ressaltar que no início do século XVI, e também nos seguintes, outros pensadores mostraram interesse pelos problemas sociais, relacionando-os ao processo educativo. Por exemplo, em Utopia, de 1516, Thomas Morus havia idealizado uma sociedade modelar, isolada das influências corruptoras, em que a manutenção da paz e da justiça aparecem como objetivos realizáveis apenas em uma sociedade educada, esclarecida, e com justa distribuição de riquezas. Na sociedade idealizada por Morus, “cada um aprende um ofício, uma arte, de acordo com sua inclinação (...) e não somente os homens, mas também as mulheres”.[4].
O número de seguidores do protestantismo e sua influência ampliaram-se ao longo do século XVII. Os textos indicam o desenvolvimento da educação pública nos Estados protestantes, a intervenção das autoridades oficiais na instituição da escola primária popular e a acentuação do aspecto religioso no ensino. Paralelamente, surgia uma doutrina pedagógica, didática, cujos precursores foram Wolfgang Ratke e Johann Amos Comenius que representaram os movimentos de secularização e racionalização na educação, embora imbuídos de princípios essencialmente religiosos.
Inspirado pelas idéias religiosas e políticas de Lutero, Ratke redigiu, em 1612, o Memorial, no qual enfatizava a necessidade de intervenção do Estado para reformar o ensino e fundar escolas germânicas. Em Teoria da direção dos regentes das escolas cristãs, reafirmava que cabe aos regentes a tarefa de criar escolas e ordenar a todos os meninos frequentá-las para que aprendam a ler, escrever e contar, além de aprender os preceitos religiosos para a salvação.
Ratke foi o criador da primeira escola experimental moderna, de 1618, a escola de Köthen, que tinha o caráter de escola pública, tendo sido fundada pelo Príncipe Luís de Anhalt- Köthen. Embora, segundo afirmam os estudioso, o empreendimento tenha malogrado por incapacidade organizadora, representou a união entre os teóricos da reforma do ensino e o poder público. As idéias de Ratke inspiraram várias Ordenanças da época, como o primeiro Estatuto Escolar, do Ducado de Weimar, de 1619, que acentuava o caráter de obrigatoriedade escolar, estabelecendo que crianças de ambos os sexos deveriam ser levadas para as escolas e lá receberem ensino da leitura e da escrita, bem como do catecismo, das rezas e dos cânticos da fé cristã.
Comenius, considerado o precursor da escola única, influiu também no desenvolvimento da educação, defendendo o ensino público e buscando apoio dos governos para as reformas pedagógicas e sociais. Segundo ele, cultura, política e religião são inseparáveis, de modo que a república cristã deveria fundar escolas para que em todo cidade ou povoação menor houvesse educandário para a juventude.
Segundo Lucília Machado, “o sistema pansófico de Comênio se contrapunha à educação jesuítica, voltada para a formação da elite e expressava as necessidades de generalização e de democratização da escola”[5]. Para ele, os conteúdos escolares deveriam ser unificados, diferenciando-se apenas a forma de ensino. Comenius talvez tenha sido um dos primeiros a afirmar a necessidade de unificação do ensino, ao propor uma reforma educativa geral, com um Colégio Universal, língua internacional, formação enciclopédica e coordenação do ensino por um órgão comum a todos os países.
Segundo Luzuriaga, Comenius estabeleceu um sistema de quatro tipos de escolas de seis anos cada, sendo a primeira a escola materna para a infância, ministrada no lar; a segunda a escola pública comum, a ser criada em cada povoação vila ou aldeia; a terceira a escola latina e ginásio, para a adolescência, a ser criada em cada cidade; e a quarta a academia, destinada à juventude, a ser criada em cada reino ou província maior. Suas idéias foram levadas para a Morávia, Polônia, Hungria, Suécia, Inglaterra e Amsterdã e, foi sob sua influência que no Estatuto de Gota, de 1642, regulamentou-se, pormenorizadamente, a escola pública, com critérios independentes das ordenações eclesiásticas.
Obrigatoriedade escolar e intervenção do Estado foram princípios defendidos por diversas correntes, como por exemplo o movimento pietista, difundido nas terras germânicas, no século XVII[6], e que influenciou a determinação, pelo Estado prussiano de que em todas as aldeias onde existissem escolas, os pais seriam obrigados a enviar seus filhos a elas, sob pena de rigoroso castigo.
Basedow, influenciado pelas ideias de Jean-Jacques Rousseau, em Émile, fundou, em 1774, o Philantropinum, um estabelecimento de ensino para todos os homens, para todas as religiões e nações.
As idéias de Basedow inspiraram a obra de Von Rochow, na qual destaca-se Do caráter nacional pelas escolas públicas, de 1779, onde afirma que “um povo que tivesse um bom caráter nacional, seria um povo feliz, honrado, forte, invencível”. E questiona: “Por que meio se dá a uma nação um bom caráter nacional? Pela criação de boas escolas públicas”.
Foi grande a alcance da escola de Basedow, e maior o do pensamento de Rousseau, que lhe inspirou. Também o racionalismo de Spinoza, Descartes e Wolff, e posteriormente o empirismo de Hume influenciaram outros pensadores cujas obras, fundamentadas pela visão revolucionária da época, versam sobre a moral e o conhecimento humano. Emanuel Kant, por exemplo, afirmava que os deveres da humanidade devem ser cumpridos de acordo com uma lei moral que privilegia o respeito individual e coletivo, e é desse modo que ele concebe o processo educativo.
A influência desse movimento reformista mostra-se no Código Geral Civil, de 1794, no qual o Rei Frederico Guilherme II determinou:
As escolas e universidades são instituições do Estado, que têm por fim a instrução da juventude nos conhecimentos úteis e científicos. Todas as instituições escolares e de educação pública e particulares, estão submetidas à inspeção do Estado e acham-se sujeitas, a qualquer tempo, a seus exames e visitas de inspeção (...) A ninguém pode ser negada admissão na escola pública pela diferença de confissão religiosa (...) As crianças que devem ser educadas pelas leis do Estado, em outra religião que a ensinada na escola pública, não podem ser obrigadas a freqüentar o ensino religioso que esta dá[7].
Nos reinos germânicos do século XIX, as medidas unificadoras para a educação nacional foram defendidas por Fichte nos seus Discursos à Nação Alemã, de 1807-1808, nos quais afirmava que:
Mediante a nova educação queremos formar dos alemães uma comunidade na qual todos os membros particulares estejam movidos e animados por uma mesmo e único interesse. (...) Portanto, só nos resta levar a nova educação a todos os alemães sem exceção alguma, de tal modo que não seja a educação de uma classe particular, senão da nação como tal, sem exceção de nenhum de seus membros[8].
Como ideólogo da unificação alemã, Fichte defendeu a unificação da escola nacional alemã, com educação pública e a cargo do Estado. Contudo, segundo ele, a escola única formaria o cidadão para a nação alemã, mas diferenciação individual manter-se-ia através das demonstrações de aptidões para os trabalhos mecânicos e aptidões para os estudos, de modo que após participar dos estudos comuns, os sábios aprofundar-se-iam nos estudos[9].
As idéias de Fichte mais tarde seriam retomadas para legitimar reformas educacionais na Alemanha sob o Terceiro Reich. A partir de 1933, a educação nacionalista na Alemanha orientou-se nas idéias totalitárias de Fichte que pregava a entrega das crianças ao Estado; de Hegel, de que o Estado absoluto representaria o direito e a realização moral; e de Nietzsche, do homem ideal. Formaram-se correntes de pensamento que elaboraram a nova ideologia da educação nacional-socialista. Surgiu o “nacionalismo espiritual”, representado pelo movimento juvenil e fundamentado na valorização da natureza, das tradições e costumes alemães.
A inspiração fazia referência à popularização do ensino, mas, no processo de elaboração, radicalizou-se e desviou-se do sentido original, tornando-se parte de uma ideologia autoritária, orientada para um modelo educacional totalitário.
Bibliografia
GILES, Thomás Ransom. História da Educação. São Paulo: E.P.U., 1987.
LARROYO, Francisco. História geral da Pedagogia. São Paulo: Mestre Jou, s.d.
LUZURIAGA, Lorenzo. História da Educação Pública. Tradução e notas de Luiz Damasco Penna e J. B. Damasco Penna. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959 (Atualidades pedagógicas).
MACHADO, Lucília Regina de Souza. Politecnia, escola unitária e trabalho. 2a. ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1991. (Educação contemporânea).
MANACORDA, Mário Alighiero. História da Educação. Da Antiguidade aos nossos dias. 2ª ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1989, (Educação contemporânea).
NUNES, Ruy Afonso da Costa. História da educação no século XVII. São Paulo: EPU : EDUSP, 1981.
PEREIRA, LUIZ; FORACCHI, Marialice M. Educação e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1987.
ROMÃO, José Eustáquio. Poder local e educação. São Paulo: Cortez, 1992.
[1] Apud LUZURIAGA, Lorenzo. História da Educação Pública. Tradução e notas de Luiz Damasco Penna e J. B. Damasco Penna. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959 (Atualidades pedagógicas).
[3] Apud LUZURIAGA, L., op. cit., p. 7).
[4] Apud MANACORDA, Mário Alighiero. História da Educação. Da Antiguidade aos nossos dias. 2ª ed. São Paulo: Cortez : Autores Associados, 1989, (Educação contemporânea) p. 216.
[5]MACHADO, Lucília Regina de Souza. Politecnia, escola unitária e trabalho. 2a. ed. São Paulo: Cortez : Autores Associados, 1991. (Educação contemporânea), p. 46-7.
[6]Movimento religioso e cultural surgido nas terras germânicas no século XVII. De acordo com T. R. Giles, “Em termos culturais, é um movimento de protesto e reação contra a dominação francesa sobre a cultura germânica e, de modo especial, contra as influências do ceticismo francês sobre o pensamento religioso (...) O pietismo desconfia profundamente daquelas igrejas que, já acomodadas com influências seculares, perderam o zelo que inspirava Lutero. O mesmo destino aguarda as escolas. Para os pietistas, o sistema educativo, reflexo da religião oficial em vigor em terras germânicas, é imoral, ritualístico e sobrecarregado pelo intelectualismo. Portando, devia ser abandonado”. GILES, T. R., op. cit., p. 167-168.
[7]Apud LUZURIAGA, L., op. cit.,p. 30.
[8] Apud MACHADO, L. op. cit., p. 48.
[9] As diferenças entre as concepções de escola unitária presentes nas teorias de Comenius e Fichte foram apontadas por Lucília Machado. Segundo a autora, “Fichte, ao contrário de Comênio, que propugnava por um sistema de ensino cosmopolita, posicionou-se como homem de seu tempo, por uma organização nacional, destinada a atender a todas as camadas sociais, indistintamente, a cargo do Estado, única força , segundo ele, a garantir tais pressupostos”. MACHADO, L. op. cit., p. 49.